China, a estação de Neuquén e o velho conto da boa pipa
Pequim voltou a desmentir uso militar da base na Patagônia. Governo argentino inspecionou as instalações e confirmou caráter científico
Por Fernando Capotondo - Coincidindo com as cúpulas do Mercosul e dos BRICS realizadas nos últimos dias na América Latina, voltou a circular a já conhecida preocupação dos Estados Unidos com a presença da China na região e seus possíveis impactos na militarização e na segurança global. Um dos pontos que surpreenderam foi a retomada das acusações envolvendo a estação espacial operada pela China na província patagônica de Neuquén — um centro de pesquisa que, segundo o governo argentino confirmou após uma inspeção em 2024, tem uso exclusivamente científico.
“Esse tipo de afirmação está repleto de preconceitos ideológicos, próprios de uma mentalidade da Guerra Fria, e não conta com um único elemento verdadeiro que a sustente”, declarou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Lin Jian, no mais recente desmentido.
Desde pelo menos 2018, Pequim defende publicamente o uso civil e científico de suas bases terrestres e espaciais na América Latina, apesar das pressões que se intensificaram a partir de 2023 com o aumento dos embates retóricos entre governos e a mídia ocidental.
Para além da posição chinesa, é importante destacar que o caráter pacífico da estação foi reconhecido por entidades internacionais como o Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (COPUOS) e a Agência Espacial Europeia (ESA), que opera, inclusive, a Estação de Rastreamento de Espaço Profundo de Malargüe, na província argentina de Mendoza.
Valor estratégico - A comunidade científica internacional frequentemente destaca a importância da Estação de Espaço Profundo CLTC-CONAE-Neuquén tanto para a exploração interplanetária quanto para o avanço do conhecimento global. A instalação permite acompanhar missões lunares e marcianas da China (como as sondas Chang’e e Tianwen), mas também contribui para pesquisas em radioastronomia e observação do universo profundo, beneficiando toda a rede mundial de cientistas.
Vale lembrar que a construção da estação foi fruto de mais de uma década de cooperação científica e tecnológica entre Argentina e China — uma aliança estratégica consolidada com os acordos entre a Comissão Nacional de Atividades Espaciais (CONAE) e a Agência Chinesa de Lançamento e Controle de Satélites (CLTC). Um desses acordos, assinado em 2012, garantiu ao Estado argentino o direito de usar 10% do tempo operacional da base para fins próprios de pesquisa.
Entre os especialistas argentinos, alguns gestos simbólicos vindos da China foram considerados ainda mais significativos do que acordos diplomáticos: em 2020, a sonda chinesa Tianwen-1, enviada a Marte, exibiu o logotipo da CONAE ao lado de outros emblemas internacionais; no mesmo ano, o foguete Longa Marcha 5B (LM-5B) levou uma bandeira da Argentina ao espaço como forma de agradecimento pelo apoio de Buenos Aires ao Programa Chinês de Exploração Lunar.
Esse histórico de cooperação permitiu que, em abril de 2024, fosse realizada sem obstáculos uma inspeção oficial na estação de Neuquén, com o objetivo de verificar as denúncias de uso militar. Segundo informou a Chancelaria argentina à época, a delegação que vistoriou o local constatou que as atividades ali desenvolvidas eram estritamente científicas — voltadas ao estudo do espaço profundo e ao rastreamento de satélites —, descartando qualquer indício de presença militar.
Para quem acompanha de perto a presença chinesa na América Latina, o relatório dessa inspeção tornou-se referência sempre que ressurgem suspeitas sobre os reais objetivos das bases operadas por Pequim na região. E a Argentina não foi a única sob questionamento: instalações localizadas em Amachuma e La Guardia (Bolívia), El Sombrero e Luepa (Venezuela), Cerro Calán (Chile), Alcântara (Brasil), e também em várias cidades do Peru (como Iquitos, Lima, Piura, Pucallpa, Puerto Maldonado e Tacna) também foram mencionadas sob a mesma sombra de desconfiança.
O contexto - Paralelamente a esse foco sobre a China, a LXVI Cúpula de Presidentes do Mercosul, encerrada na semana passada em Buenos Aires, fez um chamado para que a região volte seus olhos à Ásia, destacada como o “centro dinâmico da economia mundial”. Em 2024, o comércio bilateral entre China e América Latina e Caribe chegou a US$ 518,467 bilhões, e, na última década, Pequim financiou 268 obras de infraestrutura na região, gerando um milhão de empregos.
Também paralelamente, na XVII Cúpula dos BRICS, encerrada nesta segunda-feira (em 2025) no Rio de Janeiro, foi aprovada a Declaração de Fortalecimento da Cooperação do Sul Global para uma Governança mais Inclusiva e Sustentável. Nessa iniciativa, a China mantém sua posição como principal destino das exportações do Mercosul, que somaram US$ 668,731 bilhões — superando União Europeia e Estados Unidos.
Foi nesse cenário que reapareceram os ensaios, análises e insinuações sobre o verdadeiro papel das estações espaciais chinesas na América Latina. Um sinólogo talvez interpretasse como uma acusação recorrente, moldada para parecer crível apesar das evidências contrárias. Um observador mais experiente, por sua vez, poderia simplesmente recordar o “conto da boa pipa” — aquele jogo circular em que a pergunta se repete infinitamente, sem se importar com a resposta. Mais ou menos como acontece com a estação chinesa em Neuquén.
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