De Bandung à China: os novos 'Cinco Princípios de Coexistência Pacífica'
O conflito entre Irã e Israel e o ataque dos EUA reacenderam o espírito de uma histórica declaração lançada há 70 anos, em plena Guerra Fria
Por Fernando Capotondo, para o 247
O conflito entre Irã e Israel e o ataque dos EUA reacenderam o espírito de uma histórica declaração lançada há 70 anos, em plena Guerra Fria. Da atualidade daqueles postulados à ressignificação da China no tabuleiro global.
Após o bombardeio dos Estados Unidos contra o Irã elevar os gritos de guerra a um volume inesperado, uma das maiores urgências da comunidade internacional foi ouvir a posição da China, considerando seu protagonismo crescente em termos geopolíticos, sua influência na diplomacia do Oriente Médio e seu vínculo estratégico com Teerã (é seu principal parceiro comercial e comprador de petróleo). Nesse contexto, a rápida manifestação de Pequim em favor da paz sepultou as especulações sobre uma possível escalada de consequências imprevisíveis, ao mesmo tempo em que reforçou seu perfil de potência emergente que prioriza a estabilidade e as negociações — como já ocorrera há 70 anos, quando impulsionou os “Cinco Princípios de Coexistência Pacífica” na histórica Conferência de Bandung.
Dizem os especialistas que o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai teve um papel significativo naquele encontro internacional realizado na ilha de Java, na Indonésia, em abril de 1955. Os famosos princípios — respeito mútuo pela soberania e integridade territorial, não agressão mútua, não ingerência nos assuntos internos de outros países, igualdade e benefício mútuo e coexistência pacífica — contaram com o voto unânime dos 29 países participantes, embora, na verdade, tenham sido uma espécie de ratificação do “Acordo sobre Comércio e Relações entre a Região Autônoma do Tibete da China e a Índia”, que Pequim havia assinado com Índia e Birmânia (atual Mianmar) um ano antes, em 1954.
Durante décadas, esses postulados serviram como marco de referência para os países descolonizados da Ásia e da África, da mesma forma que hoje expressam a base doutrinária da diplomacia chinesa, como reconhecem os observadores da atuação de Pequim nos conflitos entre Irã e Israel e em outras disputas internacionais.
De fato, como se estivesse recitando o documento final de Bandung, o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, destacou esta semana que “a China apoia a paz e se opõe ao uso da força para a resolução de disputas internacionais”. Depois de denunciar que Israel e Estados Unidos “violaram gravemente o direito internacional e atentaram contra a soberania do Irã”, o chanceler fez um apelo ao diálogo e afirmou que “todas as partes devem devolver a questão nuclear iraniana ao caminho das soluções políticas”.
Em sintonia - O espírito dos “cinco princípios” também esteve presente na primeira condenação do governo chinês à ofensiva dos EUA contra as instalações nucleares iranianas de Fordow, Natanz e Isfahan. Poucas horas após o ataque, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Guo Jiakun, acusou Washington de “violar gravemente os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional”, além de responsabilizá-lo por “intensificar as tensões no Oriente Médio”.
“A China — acrescentou Guo — faz um apelo às partes em conflito, especialmente a Israel, para alcançar um cessar-fogo o quanto antes, garantir a segurança dos civis e iniciar negociações. Estamos dispostos a trabalhar com a comunidade internacional para defender a justiça e restaurar a paz”.
Um discurso quase idêntico foi pronunciado dias depois pelo representante permanente da China na ONU, Fu Cong, ao condenar “a violação por parte dos Estados Unidos da soberania, da segurança e da integridade territorial do Irã” e rejeitar o que foi considerado “um duro golpe ao regime internacional de não proliferação nuclear”. “A China está profundamente preocupada com o risco de que a situação fuja do controle”, admitiu.
“Durante tempo demais, Washington tem utilizado dois pesos e duas medidas e alimentado o caos regional para obter benefícios estratégicos. A comunidade internacional não deve permanecer de braços cruzados, mas sim agir para conter as tensões, em vez de agravá-las”, destacou um comentário editorial da agência de notícias Xinhua.
Dias depois, a China observou com cautela o segundo tempo do jogo que Trump se dispôs a jogar com Irã e Israel. Como todos sabem, o presidente dos Estados Unidos anunciou um cessar-fogo que foi violado poucas horas depois, batizou o conflito de “A guerra dos 12 dias” e, por fim, reconheceu que o fim das hostilidades (vigente enquanto estas linhas eram escritas) era uma “situação realmente frágil”.
Um novo Bandung? - Para além das declarações de Trump, a posição da China manteve-se alinhada com os princípios aprovados na Conferência de Bandung — embora, evidentemente, o que na Guerra Fria serviu como declaração de independência e impulsionou o Movimento dos Países Não Alinhados, nesta semana foi resgatado como um programa renovado de mediação diante da escalada e da aparente solução da guerra que preocupava o mundo.
Nesse sentido, a resposta da China ao bombardeio inicial dos EUA evocou o princípio do respeito irrestrito à soberania e à integridade territorial dos Estados. Pequim denunciou o ataque como uma “grave violação do direito internacional”, citando a Carta das Nações Unidas (ONU), da qual é membro fundador, e a Declaração Conjunta China–Estados Árabes de 2022. “A soberania não deve ser privilégio de poucos, mas um direito igual de todos”, disse o presidente Xi Jinping à Liga Árabe em 2016 — uma declaração que os sinólogos adoram citar quando os conflitos internacionais fornecem o contexto adequado.
O segundo princípio, de solução pacífica dos conflitos, tem se expressado, segundo os sinólogos, nos documentos e propostas impulsionados por Pequim nos últimos anos em diversos fóruns internacionais. Está presente no Ato Final de Helsinque (1975), que bem poderia ser aplicado em Gaza, Síria, Iêmen ou Ucrânia; em sua iniciativa dos “Quatro Pontos para a Paz no Oriente Médio” (2017); ou em seu “Plano de 12 Pontos para a Ucrânia” (2023). Soma-se a isso o fato de que o governo chinês ofereceu seu território como sede para futuras negociações entre Israel e Palestina e foi peça-chave na reaproximação entre Irã e Arábia Saudita, anunciada em Pequim em março de 2023.
Além disso, onde antes se falava em “igualdade e benefício mútuo”, hoje se pode apontar o conceito de justiça como coluna vertebral de uma paz sustentável. Nesse sentido, a China costuma afirmar que não deve haver dois pesos e duas medidas na aplicação do direito internacional e que as resoluções da ONU devem ser cumpridas sem seletividade. Essa posição tem um antecedente relevante em seu apoio histórico à causa palestina, que começou com o reconhecimento da OLP em 1965.
Especialistas explicam que, diante da lógica dos blocos militares, a China propõe hoje uma arquitetura de segurança inclusiva e cooperativa, atualizando o antigo princípio da “coexistência pacífica” à linguagem geopolítica do século XXI. Essa ideia, sustentam, está contida na Iniciativa de Segurança Global (GSI), lançada por Xi Jinping em 2022, que busca substituir a dissuasão pela prevenção e o equilíbrio militar pela cooperação regional.
Por fim, um dos princípios mais inovadores que se pode propor em um debate sobre o papel da China é que a paz, agora, deve ser construída com desenvolvimento sustentável. De fato, o país asiático entende que a pobreza, a desigualdade e o subdesenvolvimento alimentam o extremismo e a violência. Por isso, vincula suas propostas diplomáticas a projetos como a Iniciativa do Cinturão e Rota, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) ou a Iniciativa de Desenvolvimento Global (GDI), apresentada na ONU em 2021. No Oriente Médio, assinou mais de 200 acordos de investimento com 22 países — de telecomunicações no Egito a portos logísticos na Arábia Saudita. Nesse aspecto, a carta de apresentação de Pequim aparece como uma alternativa distinta à estratégia de contenção militar adotada pelos Estados Unidos e alguns de seus aliados.
Em síntese, a guerra entre Irã e Israel, o bombardeio dos EUA, a verborragia de Trump e o fio tênue que sustenta o cessar-fogo talvez contribuam para que os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica deixem de ser vistos como um documento do passado e passem a ser reivindicados como um guia possível para tempos cada vez mais violentos.
Se os princípios forem fortes, têm mais poder do que qualquer bomba ou míssil — dizem, em voz baixa, na China.
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