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2 de Julho: população baiana vai às ruas de Salvador para celebrar a independência que é de todo um país

Com o protagonismo de mulheres, pessoas negras e indígenas, as lutas travadas na Bahia são motivo de celebrações e homenagens

Manifestação na Bahia (Foto: Adriel Francisco / Gov. Bahia)
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Lorena Andrade, Brasil de Fato - “Nasce o Sol a dois de julho/Brilha mais que no primeiro/É sinal que neste dia/Até o Sol, até o Sol é brasileiro”. O hino ao 2 de julho, composto pelo poeta e militar Ladislau dos Santos Titara, anuncia: é dia de celebrar a Independência da Bahia. Titara, que participou das batalhas em Salvador que levaram à expulsão definitiva das tropas portugueses do Brasil em 1823, é reconhecido por traduzir em versos o espírito de uma luta que, para muitos historiadores, marca a verdadeira independência do país.

Com o protagonismo de mulheres, pessoas negras e indígenas, as lutas travadas na Bahia, que culminaram no 2 de Julho, são motivo de celebrações e homenagens que, até hoje, ocupam as ruas da capital baiana com o desejo de liberdade eternizado nos versos do hino: “Nunca mais o despotismo/ Regerá nossas ações/Com tiranos não combinam/Brasileiros corações”.

Os festejos em Salvador nesta quarta-feira (2) tiveram início às 6h, com a tradicional alvorada com queima de fogos no Largo da Lapinha. Às 8h, o hasteamento das bandeiras por autoridades e a execução do hino nacional prepararam o início do desfile cívico, que contou com a participação de fanfarras, filarmônicas e grupos populares.

Milhares de pessoas seguiram o percurso até o Terreiro de Jesus, no Pelourinho, fechando a primeira parte do desfile. Ícones do cortejo, as imagens do Caboclo e da Cabocla são conduzidas em carros alegóricos ao longo de todo o trajeto, representando a composição popular do exército que tomou as ruas contra as forças coloniais.

“O 2 de Julho é mais que uma data: é o símbolo da luta e da coragem do povo baiano, que iniciou aqui o caminho pela Independência do Brasil. Hoje, celebramos a nossa história, nossa cultura e a força de quem nunca desistiu de lutar pela liberdade. Viva a Independência da Bahia!”, celebrou o governador Jerônimo Rodrigues (PT), por meio das redes sociais.

O desfile contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, num gesto simbólico, levantou um cartaz com uma mensagem a favor da taxação dos super ricos. Na terça-feira (1º), Lula também encaminhou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional para tornar o dia 2 de julho o Dia Nacional da Consolidação da Independência do Brasil. Em vídeo divulgado nas redes sociais, o presidente ressalta a invisibilidade que a data ainda tem na memória coletiva da sociedade. “Isso não é conhecido da história porque não está nos livros didáticos brasileiros. A aprovação desse projeto vai mostrar para o Brasil inteiro, que além de Dom Pedro, o povo baiano teve muito a ver com a nossa independência.”

À tarde, o cortejo voltou a se concentrar em direção ao 2º Distrito Naval, no bairro do Comércio, onde foi realizada uma cerimônia cívica e, em seguida, as comemorações seguem no Campo Grande com acendimento da pira do Fogo Simbólico. A programação oficial segue até às 21h30, com o Encontro de Filarmônicas com o maestro Fred Dantas, reunindo músicos e comunidade em celebração cultural.

Um cortejo de muitas lutas

Seguindo o legado de resistência, a celebração do 2 de Julho também é espaço de reivindicação popular. Movimentos sociais, sindicais, partidos políticos e grupos culturais se organizam ao longo do desfile para defender seus direitos e dialogar com a sociedade.

Uma das iniciativas é a do Plebiscito Popular, lançada nacionalmente em abril deste ano pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. A proposta é consultar a população sobre temas centrais para a vida dos trabalhadores, como a redução da jornada de trabalho e justiça tributária, com isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil. O Plebiscito, lançado no fim de maio na Bahia, realiza sua primeira coleta de votos no estado ao longo do cortejo.

Raquel Nery, presidenta do Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia (Apub Sindicato), destaca a importância da iniciativa para ampliar o entendimento da sociedade do que é política. “[O plebiscito] é um modo de participação da democracia para além do voto”, aponta.

Nery também destaca que a entidade vai às ruas na luta contra a proposta de Reforma Administrativa em curso no Congresso e reacendida pelo presidente da Câmara Federal, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB). Para a presidenta, a iniciativa tem caráter neoliberal e é, na verdade, uma “deforma” administrativa.

“Eles estão dando a ela um tom de que é uma modernização do Estado brasileiro, que a gente quer mais moderno mesmo. Mas, no fundo, querem tocar em questões fundamentais, que é a estabilidade do servidor público, colocar o serviço público a serviço dos interesses dos setores econômicos que, de fato, tem poder de lobby dentro do Congresso Nacional”, avalia.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também marca presença nas celebrações do 2 de Julho na capital baiana. Militante do movimento e coordenador do Mãos Solidárias na Bahia, Leandro Santos destaca a participação popular nas lutas de independência e a necessidade de resgatar esse legado na história oficial.

“A narrativa da independência do nosso país foi fabricada, de modo a atribuir a algumas poucas pessoas da elite brasileira o protagonismo e a centralidade neste feito. Quando na realidade, a independência do Brasil foi forjada nas ruas, por indígenas, negros/as, vaqueiros e camponeses. Quando a Bahia expulsa os portugueses, de forma pioneira no Brasil, a partir desse conjunto de forças populares, realizamos o verdadeiro grito de independência do Brasil”, destaca.

Fernanda Souza, secretária do Mãos Solidárias no estado, completa: “Para o Mãos Solidárias e o MST, esta verdadeira memória do 2 de julho nos fortalece. Nos lembra o quanto somos um povo aguerrido e capaz de transformar as estruturas sociais. Movimentos sociais como os nossos são herdeiros deste legado de lutas e resistências”.

Ressignificar a história

Apesar do famoso grito de Dom Pedro I às margens do riacho do Ipiranga em 7 de setembro de 1822 ser considerado oficialmente o marco da proclamação da independência do Brasil, o gesto do Príncipe regente, na verdade, só marcou o início das lutas pela verdadeira separação do país de Portugal. É o que explicam os historiadores Matheus Buente e Naiara Natividade, que no último sábado (2), ministraram a aula pública “2 de Julho: a Verdadeira Independência do Brasil”, organizada pelo MST e Mãos Solidárias no Armazém do Campo, localizado no Pelourinho, em Salvador.

“A partir de 7 de setembro de 1822 vão ocorrer diversas batalhas, principalmente no Nordeste brasileiro, a fim de expulsar o controle português do nosso país. A última localidade a ter os portugueses expulsos, e declarando o Brasil vencedor da sua guerra de independência, é Salvador”, salienta Buente.

O professor de história destaca que, apesar do esforço institucional da historiografia brasileira de apontar a imagem de Dom Pedro I como herói da independência, os verdadeiros heróis das lutas de libertação no Brasil são do povo – com protagonismo de mulheres, pessoas negras e indígenas – tendo o Nordeste como palco principal das disputas. Por isso a importância de valorizar o dia 2 de julho como uma data que também subverte preconceitos enraizados no país.

“O 2 de Julho ressignifica essa data, mostra que esse processo é popular. É combater a xenofobia, o machismo e o racismo que na nossa sociedade é tão presente”, destaca.

Heroínas da Independência

Apesar das tentativas de apagamento ao longo da história, três mulheres tiveram um importante papel no processo de independência: Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa. A primeira delas, a sóror (uma espécie de freira do alto escalão) Joana Angélica, é considerada um dos símbolos das lutas em Salvador por tentar impedir a entrada do exército português no Convento da Lapa, uma das construções mais importantes da cidade, onde supostamente havia pessoas escondidas. Assassinada com golpe de baioneta, tornou-se mártir por defender seus ideais religiosos e marcou uma virada de chave na opinião pública sobre Portugal.

“Se precisava de uma motivação popular para que mais pessoas se somassem nas lutas pela independência, o assassinato de Joana Angélica é um grande momento. Matar uma freira foi um simbolismo de violência muito grande. Após sua morte, o Exército Brasileiro vai usá-la como símbolo, como motivação, ela se torna mártir da independência”, destaca Buente.

Diante do aumento da repressão em Salvador, as tropas de resistência recuam na capital e decidem se reorganizar em Cachoeira, município no Recôncavo da Bahia. É nesse momento que surge a figura de Maria Quitéria. De Feira de Santana, do então distrito de São José das Itapororocas (atualmente Distrito de Maria Quitéria), a jovem foi criada pelo pai e sabia atirar muito bem. Quando soube de notícias de que o exército libertador estava recrutando pessoas, usou o uniforme do cunhado, Soldado Medeiros, para, num primeiro momento, se disfarçar de homem e compor o grupo de lutadores. Mesmo descoberta, suas habilidades garantiram sua permanência no grupo.

“Maria Quitéria era tão melhor que os caras que eles preferiram dar uma saia a ela a dispensá-la”, brinca Buente. “Inclusive, na Batalha de Pirajá, um dos batalhões vai ser comandado por Maria Quitéria. Então ela não estava ali só porque era corajosa. Ela se tornou uma peça importante dentro do Exército”, completa.

A Batalha de Pirajá, em 8 de novembro de 1822, foi central para fortalecer o espírito de independência. Lutando contra o exército português, as tropas brasileiras, mesmo amadoras, conseguiram sair vitoriosas. Os historiadores destacam que, além de Maria Quitéria, foram outras figuras do povo – como indígenas, trabalhadores, homens negros escravizados – que garantiram a vitória para o país.

No entanto, ainda não havia naquele período uma identidade nacional no território que gerasse um sentimento de “defesa da pátria”. Cada grupo ou setor social que compunha o exército ou o apoiava estava preocupado com seus interesses. Do ponto de vista de latifundiários da região do Recôncavo Baiano, por exemplo, que financiou o exército insurgente, o interesse pela independência estava na possibilidade de estabelecer novos acordos comerciais. Já os escravizados e indígenas, por sua vez, buscavam defender sua liberdade e seu próprio território, como é o caso de Maria Felipa.

“Maria Felipa não estava lutando porque queria a independência. Ela estava querendo proteger o quilombo dela”, ressalta Naiara Natividade.

Mulher negra, marisqueira e liderança quilombola da Ilha de Itaparica, Maria Felipa foi fundamental para a vitória da Batalha de Itaparica, ocorrida em 7 de janeiro de 1823. No entanto, até hoje ainda se questiona se ela existiu ou não, inclusive na literatura oficial. Para Natividade, esse entendimento só reforça a lógica racista e machista que opera na sociedade.

“Como a gente pode dizer que Maria Felipa não existiu porque ela tinha todas essas funções – marisqueira, líder de quilombo, resolvia questões políticas? A gente tem exemplos disso até os dias atuais. A gente tem exemplo dentro de casa. Então é querer apagar algo que você vive”, ressalta.

“A quem interessa uma parte da história em que Maria Felipa não existe?”, questiona Buente. “O mesmo mundo em que não se conhece a história de Maria Felipa é o que se admite Dom Pedro como herói. Falar de Maria Felipa e defender sua existência é defender a memória viva, o legado de um Brasil que se parece com a gente”, completa.

Após a Batalha de Itaparica, o cerco contra as tropas portuguesas seguiu, até que no dia 1º de julho de 1823, o General Madeira de Melo, que comandava o exército colonial, mandou uma carta para o General Labatut, comandante do exército de independência, em que declara rendição e pede 24h para organizar uma frota para retornar com seus soldados a Portugal.

“É feito um acordo para que, ao nascer do sol do 2 Julho – por isso o verso do hino – as caravelas portuguesas partissem do Porto de Salvador, retornando à Lisboa, e a tropa libertadora pudesse ocupar Salvador e declarar a cidade como livre e independente”, explica Matheus Buente.

“Então General Labatut faz uma coisa maravilhosa que é liberar 400 litros de aguardente para que houvesse um desfile das tropas libertadoras com festa e música”, conta o historiador, rindo. “E de fato pegaram um caboclo, um soldado que tinha aparência indígena, e esse homem foi em cima de uma carroça cantando e o povo atrás”, relata. Pouco mais de duzentos anos depois, o povo baiano segue honrando o legado de luta, coragem – e também alegria – de quem nos fez chegar até aqui.

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