Seu Waldir, meu amor: o perdão tardio à Ave Sangria
'A tesoura da censura não cortava apenas canções, mas futuros', escreve a colunista Sara Goes
Ave Sangria começa a ser reconhecida como vítima da ditadura 50 anos após a censura de seu disco, silenciado pela faixa Seu Waldir. A Comissão de Anistia aprovou o pedido de reparação ao guitarrista Ivinho, já falecido
Em meio à ditadura dos anos 1970, Recife fervilhava como um caldeirão criativo, palco do Udigrudi, a psicodelia pernambucana. Jovens cabeludos formavam bandas como Ave Sangria para arengar com a caretice local e a prima rica consagrada em festivais, a MPB.
Já Ave Sangria e seus pares compunham do lado de dentro. Não performavam a regionalidade nem teorizaram sobre misturas. Queriam outro Brasil, não o que cabia nas pautas da MPB, mas aquele que cabia num disco prensado por teimosia no Recife, gravado com as sobras do que sobrava do sul.
Foi desse outro Brasil que nasceu Seu Waldir, canção de amor e escárnio que escancarou o que a moral dominante preferia varrer para debaixo do tapete da decência. Um homem declarando amor a outro homem, com apito, camisa de cetim e ameaça de morrer nos dentes de um ofídio. Marco Polo escreveu a letra como paródia, para ser cantada por uma mulher. Mas resolveu cantá-la ele mesmo, num ato simples e radical de desobediência estética. A caretice reagiu com fúria. A censura do disco veio rápido, com carimbo oficial e cheiro de mofo. Em agosto de 1974, Ave Sangria foi recolhido das lojas e lançado ao esquecimento. O regime militar achava que podia silenciar uma geração interditando um vinil.
Décadas depois, o Estado enfim admite que errou. O guitarrista Ivson Wanderley Pessoa, o Ivinho, falecido em 2015, teve reconhecido seu direito à anistia e à reparação econômica. O pedido foi feito por sua filha e acolhido por unanimidade pela Comissão de Anistia. Uma solenidade pública está prevista em Recife, sua cidade natal, para que o Brasil peça desculpas, ainda que tarde demais.
Trata-se de reconhecer que a tesoura da censura não cortava apenas canções, mas futuros. Que a repressão cultural não mirava exclusivamente as letras, mas os corpos que ousavam desafiar o papel de figurantes da história. Ivinho não era só guitarrista. Era uma força inventiva que traduziu em distorção o grito abafado de uma cidade quente, suada e profundamente inteligente, obrigada a se explicar o tempo inteiro a quem sempre lhe deveu tudo.
A anistia dele não é só um ato jurídico. É uma partitura de reparação. Uma música que volta a tocar. E mais, os requerimentos dos outros cinco integrantes da Ave Sangria, negados na era Damares, aquela que confundiu Estado com púlpito e Comissão de Anistia com tribunal moral, devem agora ser revistos. É o mínimo.
Ave Sangria nunca teve medo do exagero. Misturava psicodelia com baião, sátira com paixão, lirismo e escracho. Eram escandalosamente livres. E talvez por isso tenham sido tão perigosos para uma ditadura que odiava a dúvida, a cor, o improviso. O tempo passou, mas o incômodo persiste. Porque o Brasil continua sendo um país que perdoa torturadores e desconfia de artistas. Que presta continência para o autoritarismo e exige decoro da irreverência.
Por isso, quando a Comissão de Anistia se reúne e diz “perdão”, não é só para a filha de Ivinho que essa palavra deve ser dita. É para uma geração inteira. Para os recifenses cabeludos do Cine Coliseu. Que a cerimônia em Recife não seja só um ato. Que seja um recomeço. Que o país aprenda, enfim, a não transformar sua vanguarda em ré.
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