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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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Tarcísio, o chanceler do Bandeirantes: o antilulismo como política externa

Nações que abdicam de autonomia na política externa raramente prosperam. Diplomacia não é campo para dogmatismos

Tarcísio de Freitas (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Em meio a um dos momentos mais dramáticos do interminável massacre de Israel sobre a Palestina, assistimos ao espetáculo constrangedor de um governador de estado arrogando-se o papel de chanceler paralelo. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, decidiu criticar a política externa brasileira sobre o genocídio israelense contra os palestinos, defendendo um “alinhamento automático” com democracias ocidentais. O episódio, detalhado pela imprensa, exige reflexão sobre o que realmente está em jogo.  

Comecemos por um fato incontornável: um governador exerce atribuição que a Constituição reserva exclusivamente à União. Tarcísio, em sua ânsia por contraponto, parece ter ignorado esse “detalhe constitucional menor”.  

Num evento com empresários, o ex-ministro de Bolsonaro não só atacou a posição brasileira sobre Gaza, como insinuou que o presidente não representa o “verdadeiro pensamento nacional” — como se 60 milhões de votos fossem menos legítimos que sua autenticidade imaginária.  

Isso remete à velha estratégia da direita: incapaz de governar centralmente, tenta fazê-lo pelas bordas. Sem acesso ao Itamaraty, que tal criar uma chancelaria alternativa no Bandeirantes?  

Mas há mais que cálculo eleitoral. O gesto adere a um projeto que, sob verniz teológico e de segurança, esconde uma realidade colonial brutal. Ao defender “alinhamento automático” com o Ocidente nesse contexto, Tarcísio não apenas agrada eleitores evangélicos e a comunidade sionista paulistana, mas endossa uma visão que normaliza a opressão sistemática de um povo. 

O sionismo, originalmente movimento de colonização europeia que se aproveitou da aflição dos judeus diante de perseguições históricas, transformou-se sob Netanyahu e a extrema-direita israelense em um explícito projeto de holocausto, associado ao imperialismo dos EUA e Europa, embora Israel execute esse plano desde 1948. Como documenta o historiador Ilan Pappé, vive-se uma limpeza étnica em câmera lenta há décadas.

Tarcísio não age isolado. A instrumentalização do genocídio virou peça-chave no arsenal retórico da direita brasileira. Não por acaso, bandeiras de Israel tremularam ao lado das brasileiras nos atos bolsonaristas da Paulista. Apropriar-se disso serve a um propósito: construir narrativas binárias de “civilização versus barbárie” ou “o bem contra o mal” transplantáveis ao cenário político doméstico.  

O mais chocante, contudo, não é o uso de tragédia humanitária como capital político, prática já rotineira na decadente política brasileira. É o apagamento da tradição diplomática brasileira forjada por nomes como San Tiago Dantas e Oswaldo Aranha.  

Desde 1948 (sob presidência do brasileiro Oswaldo Aranha na ONU), o Brasil defendeu a solução de dois Estados e a coexistência pacífica. Essa posição equilibrada de reconhecimento tanto do direito de Israel à segurança quanto dos palestinos à autodeterminação foi mantida pela chancelaria de governos diversos, do regime militar (pasmem) a Lula, muito embora Israel tenha se esforçado para convencer a opinião pública mundial do contrário. 

O “alinhamento automático” proposto por Tarcísio rompe não só com Lula, mas com toda essa tradição. É a troca do equilíbrio pela subserviência. Sob o discurso de “valores ocidentais” e “combate ao terrorismo”, esconde-se uma visão utilitarista que relativiza o sofrimento palestino por interesses imediatos.  

O posicionamento revela ainda a força do lobby sionista no Brasil — tema inexistente na grande mídia corporativa. Estudos da UFF mostram que a influência de organizações pró-Israel no financiamento eleitoral e na formação de opinião cresceu exponencialmente na última década. Políticos alinhados a essa agenda recebem tratamento privilegiado em círculos empresariais e midiáticos.  

Ao criticar a política externa brasileira, Tarcísio sinaliza não só para seu eleitorado conservador, mas para essa rede de influência. É, nos termos de Pierre Bourdieu, uma estratégia de acumulação de capital simbólico em múltiplos campos.  

Reduzir o episódio a mero cálculo para 2026 é ingenuidade. Busca-se reconfigurar a tradição diplomática, substituindo o multilateralismo pragmático por um alinhamento automático que, sob o pretexto de “defender valores ocidentais”, subordina nossos interesses a agendas alheias.

Não nos enganemos: “alinhamento automático” não propõe política externa soberana, mas subordinação nacional a interesses externos. É o antilulismo como doutrina diplomática — rejeita-se uma posição não por contrariar o Brasil, mas simplesmente por ser defendida pelo adversário.  Isso também tem sido recorrente em assuntos internos do país.

Historicamente, nações que abdicam de autonomia na política externa raramente prosperam. A diplomacia não é campo para dogmatismos, mas espaço de defesa pragmática de interesses nacionais. Ao manipular o massacre de Israel contra os palestinos para obter vantagens em disputas internas, Tarcísio arrisca a credibilidade internacional do Brasil como mediador equilibrado. 

Que fique claro: criticar o governo israelense não é endossar o Hamas ou o terrorismo – muito embora seja óbvio que um povo que não dispõe de um Estado nacional, nem de um exército para defender sua soberania, possa encontrar na guerra não convencional uma forma de resistir. Essa falsa dicotomia empobrece o debate. É possível condenar os ataques de 7 de outubro e a resposta desproporcional israelense que já matou mais de 55 mil palestinos, maioria civis inocentes.  

O Brasil, forjado na diversidade, tem obrigação moral de defender uma solução justa baseada no direito internacional e na dignidade humana de ambos os povos. Nossa tradição diplomática nos credenciou como mediadores globais e não pode ser sacrificada por ambições eleitorais de quem confunde política externa com palanque.  

Enquanto autoproclamados “defensores do Ocidente” exibem subserviência a Netanyahu, crianças palestinas morrem sob escombros em Gaza e 1,9 milhão de seres humanos correm o risco de morrer de fome. Essa é a realidade brutal que o discurso do “alinhamento automático” tenta ocultar. Nenhuma ambição política justifica tamanha cegueira moral.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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