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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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O dia em que a ciência tocou o inferno

Não há neutralidade no conhecimento nuclear; toda descoberta carrega um destino, e todo avanço exige responsabilidade

(Foto: Gerada por IA/DALL-E)

Na manhã de 21 de maio de 1946, em um laboratório do deserto do Novo México, o brilho azul de uma explosão silenciosa e invisível selava o destino de um homem e marcava para sempre a história da ciência. Louis Slotin, físico brilhante e veterano do Projeto Manhattan, protagonizava uma das mais infames tragédias da era atômica — o episódio que ficaria conhecido como o acidente do “núcleo demônio”.

Quase oito décadas depois, enquanto o mundo acompanha com apreensão os esforços diplomáticos e militares para impedir que o Irã desenvolva armas nucleares, esse episódio histórico ressurge como advertência eloquente: o poder atômico, mesmo em mãos experientes, é volátil, imprevisível e devastador. O que Slotin enfrentou com as próprias mãos — uma reação descontrolada em frações de segundo — continua assombrando os corredores da geopolítica contemporânea, onde erros de cálculo e atos de arrogância podem incendiar o planeta inteiro.

Era o fim de uma era e o início de outra. A Segunda Guerra Mundial havia terminado meses antes, com os horrores de Hiroshima e Nagasaki ainda pulsando na memória coletiva. Em Los Alamos, onde fora forjada a era nuclear, cientistas tentavam retomar suas carreiras acadêmicas, enquanto as ogivas e os experimentos radioativos sobreviventes do conflito jaziam entre prateleiras e cofres de chumbo. Um deles, uma esfera de plutônio de 14 libras, ganharia notoriedade sombria — já havia ceifado a vida de um cientista, Harry Daghlian, em agosto de 1945. Mesmo assim, ali estava ela novamente, à espera de mais um teste.

Louis Slotin, canadense, 35 anos, era conhecido tanto por sua genialidade quanto por uma inquietante autoconfiança. Ele havia participado do desenvolvimento da bomba que destruiu Nagasaki e conhecia profundamente os limites do plutônio. Mas preferia testar esses limites com as próprias mãos. Em vez de usar ferramentas remotas, como recomendavam os protocolos de segurança, manipulava manualmente os componentes radioativos — um estilo que seus colegas chamavam de “cutucar o rabo do dragão”.

Foi exatamente isso que ele fez naquele dia: diante de outros cientistas, Slotin conduzia um experimento de criticidade, aproximando lentamente duas semiesferas de berílio ao redor do núcleo de plutônio para observar a reflexão de nêutrons. Segurava tudo com as mãos, separando as peças com a ponta de uma simples chave de fenda. Um gesto arriscado, milimétrico, cuja margem de erro era zero.

O erro, no entanto, veio. A chave de fenda escorregou, as semiesferas se fecharam completamente por um instante, e o núcleo atingiu a massa crítica. Uma súbita luz azul — o clarão fantasmagórico da radiação Cherenkov — iluminou a sala. O ar estremeceu. Slotin, com reflexo fulminante, separou as peças à força com os dedos, encerrando a reação e salvando a vida de seus colegas. Mas o preço seria altíssimo.

Estima-se que Slotin tenha absorvido cerca de 1.000 rads de radiação de nêutrons e raios gama — uma dose absolutamente letal. O que se seguiu foi um calvário descrito por médicos como “uma queimadura solar tridimensional”. Nos dias seguintes, ele enfrentou vômitos, confusão mental, queimaduras severas, falência múltipla de órgãos e, por fim, a morte, nove dias depois. Seu corpo, lentamente destruído por dentro, tornou-se símbolo trágico da exposição aguda à radiação.

O núcleo, envolto em silêncio e temor, jamais seria usado novamente em testes ou armas. Ganhou o apelido definitivo de “demon core” — o núcleo demônio — e tornou-se um artefato simbólico da fronteira tênue entre conhecimento e arrogância, ciência e fatalidade.

Um espelho para os perigos da era nuclear - O caso de Slotin transcende o mero acidente laboratorial. Ele expõe a vulnerabilidade do ser humano diante das forças que ele próprio desencadeia. Em plena aurora da era atômica, cientistas e militares se moviam entre a euforia do poder recém-descoberto e o terror de suas possíveis consequências. O “núcleo demônio” não era apenas uma esfera de metal radioativo — era o reflexo de uma civilização fascinada pelo domínio do incontrolável.

Slotin não era um aventureiro. Era um cientista altamente capacitado, consciente dos riscos, mas também moldado por uma cultura científica em que os limites da precaução ainda eram maleáveis, especialmente em um mundo saindo da guerra total. Sua morte brutal foi, ao mesmo tempo, um grito de alerta e um pedido póstumo de prudência.

A Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, criada pouco depois, impôs regras mais rígidas e baniu testes manuais desse tipo. Mas o preço já havia sido pago — não apenas em vidas humanas, mas em consciência histórica.

O legado sombrio do “dragão atômico” - Em tempos em que se discute a volta da corrida armamentista, o uso civil da energia nuclear e os riscos de catástrofes como Chernobyl ou Fukushima, relembrar o caso Slotin é mais do que revisitar um episódio trágico: é compreender o abismo ético que a ciência pode tocar quando desprovida de limites morais e segurança rigorosa.

Hoje, o “núcleo demônio” repousa apenas na memória da história, mas seu brilho azul — aquela cintilação breve e letal — continua iluminando a consciência de cientistas, historiadores e políticos. Ele nos lembra que não há neutralidade no conhecimento: toda descoberta carrega um destino, e todo avanço exige responsabilidade.

Hoje, o “núcleo demônio” repousa apenas na memória da história, mas seu brilho azul — aquela cintilação breve e letal — continua iluminando a consciência de cientistas, historiadores e líderes políticos. Ele nos recorda que a energia nuclear não é apenas uma conquista científica: é uma fronteira moral. O episódio que ceifou a vida de Louis Slotin com uma reação crítica descontrolada, acionada por um deslize de segundos, é o espelho do risco que ainda paira sobre o mundo.

Na última semana, os Estados Unidos realizaram uma ofensiva militar de alto impacto, atingindo instalações nucleares do Irã em Fordow, Natanz e Isfahan — uma ação que buscou desarticular, à força, o avanço de um programa que, segundo alertas da Agência Internacional de Energia Atômica, já operava perigosamente próximo da capacidade armamentista. A ironia sombria é que, tanto no deserto de Los Alamos quanto no subterrâneo das cidades iranianas, o mesmo dilema permanece: como conter a potência do átomo quando a ambição humana o transforma em arma?

Richard Feynman, também participante do Projeto Manhattan, alertou que “a ciência é como uma chave: pode abrir a porta do paraíso ou do inferno”. Seu aviso, feito décadas atrás, permanece assustadoramente atual. As decisões tomadas por governos e militares diante da ameaça nuclear não são apenas questões estratégicas ou de segurança nacional — são apostas sobre o destino da civilização.

A morte de Slotin, heróica em sua tentativa desesperada de salvar os colegas, foi também o preço da arrogância científica desprovida de humildade. Hoje, ao ver o planeta novamente à beira do precipício atômico, com armas capazes de destruir cidades inteiras em minutos, a história nos cobra sensatez. Que os líderes do presente — e os que vierem depois — compreendam, enfim, que o verdadeiro poder não está em dominar o átomo, mas em dominar a si mesmos. Só assim o conhecimento deixará de ser maldição e voltará a ser caminho para a paz.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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