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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Meia dúzia de metros quadrados

O sonho – e às vezes o pesadelo – de morar perto demais do trabalho

O sonho – e às vezes o pesadelo – de morar perto demais do trabalho (Foto: Luis Cosme Pinto)

Mulher bonita, a Armanda. Bonita e forte. Oitenta quilos distribuídos em um metro e oitenta.

Ela entrou em nossas vidas pela porta da cozinha. Chegou como diarista. Lavava, passava, limpava e ajudava a minha mãe.

Numa segunda feira, surgiu com o lábio inchado e a testa roxa. Disse a verdade, que Armanda nunca foi de lorota.

- Foi o Vanderlei, aquele covarde.

Meus irmãos e eu saímos de fininho, enquanto minha mãe servia água da moringa com duas colheres de açúcar para Armanda.

- A senhora deixa eu dormir uns tempos aqui no quartinho?

Minha mãe concordou. Só então, as duas se abraçaram. Só então, Armanda conseguiu chorar. Tinha raiva, mas acima de tudo tinha decepção naquelas lágrimas.

- Como o homem que eu amo tanto pôde me bater?

Enxugou os olhos no avental e empunhou a vassoura, como se a faxina fosse mais urgente que o desabafo.

Eu e meus dois irmãos gostávamos da nova moradora. Incansável, nos contava causos da favela e sabia jogar dama. Comprava a cerveja do meu pai, atendia minha mãe. Aí, desligava o radinho de pilha e dormia no quarto 3x2. Meia dúzia de metros quadrados!

Só com o tempo percebemos que aquilo tinha nome: trabalho escravo. E, claro, não era só lá em casa. Centenas, milhares de trabalhadoras, que não tinham onde dormir aceitavam o salário modesto. A moradia precária com alimentação era o complemento.

Sem horário, sem férias, sem décimo terceiro, eram exploradas sem contestação. Sempre num quarto apertado, sem janela, sem conforto.

Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto
Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto(Photo: Reprodução)Reprodução


Bem que Armanda gostaria de voltar ao barraco humilde no morro dos Macacos e sambar nos ensaios da Unidos de Vila Isabel. Queria tanto que uma noite foi até lá. Conheceu o ritmista Augusto. Este sim, um homem de verdade. Um homem para Armanda.

Na semana seguinte, Armanda deixou o quartinho com uma trouxa equilibrada na cabeça e um sorriso que ia até o Méier. Continuou a cuidar da gente, mas com horário marcado.

A despedida de verdade se deu 5 meses depois, quando a barriga anunciava o primeiro filho. O bochechudo Augusto Cesar, nasceu num longínquo Agosto dos anos 1970.

Na outra ponta da Via Dutra, outras histórias de guerreiros em busca de um teto.

Valfrido é zelador na Vila Buarque e há 30 anos vive com a família no último andar. Tem vista pro Minhocão e pra serra da Cantareira. Nunca pagou aluguel na vida e a economia ajudou a criar 3 filhos. Um deles, doutor.

Já desentupiu privada no sábado à noite e separou briga de vizinhos. “O melhor do batente é o endereço”, Valfrido costuma repetir. 

Valfrido é freguês no salão do Wesley. Lá, os marmanjos pagam 50 reais para sair mais bonitos e mais felizes. Quando o barbeiro chegou de Tanhaçu se acomodava de favor em Diadema.

Parado num congestionamento, Wesley teve a ideia que lhe transformou a vida. Em vez de ficar tantas horas de pé em um ônibus por que não morar no salão? Comprou um saco de dormir e ganhou preciosas horas. Em troca do teto, mantinha tudo limpo. Juntou os caraminguás, vendeu uma vaca no sertão baiano e virou sócio.

Com dona Ivete e seu Elísio aconteceu o contrário: ao invés de morar no serviço, sempre trabalharam em casa. O sobrado confortável tinha garagem demais para carro de menos.  Ali levantaram a loja.

Numa época em que o mundo escrevia à mão, a papelaria era excelente negócio. Tão lucrativo que os filhos viraram sócios. Família unida, em casa e no trabalho.

Estive lá semana passada, queria um pacote vistoso para enfeitar o Parabéns Para Você de um festeiro. Papel colorido, laço de fita, cartão para dedicatória, não faltou nada. Um embrulho daqueles, que o aniversariante abre com cuidado para não estragar a embalagem. A filha mais velha me atendeu.

- E o casal que há décadas comanda a papelaria de segunda à sábado?

- Meu pai, depois dos 85, perdeu a memória, confunde as coisas, até o nome da gente ele esqueceu. Não dá mais para ele ficar no balcão, não. Minha mãe tá desolada e agora se dividiu: metade do tempo em casa com o parceiro de vida, a outra metade aqui com a gente. Esse é o sonho e o pesadelo de trabalhar perto de casa, moço.

Ela aperta o laço, cola o último durex e me dá um sorriso triste de despedida.  

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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