Luis Pellegrini avatar

Luis Pellegrini

Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis

31 artigos

HOME > blog

Governos autoritários: reinados da mentira e do engano

Todo líder com vocação autocrata cultiva o caos e a desconfiança, escreve Luis Pellegrini

(Foto: Reuters/Ilustração)

O uso sistemático da mentira, especialmente da mentira descarada e repetida, é um recurso clássico para enfraquecer a democracia e preparar o terreno para o autoritarismo

Na manhã de ontem, manchetes dos jornais no mundo todo anunciavam que os três líderes envolvidos na mais recente guerra – uma das mais esdrúxulas em toda a história das guerras – cantavam de galo e declaravam vitória. Em Israel, Netanyahu afirmava ter salvado o mundo de uma iminente hecatombe atômica ao atacar e derrotar o Irã. Em algum lugar bem escondido no Irã, aiatolá Khamenei reivindicava vitória sobre Israel e dizia que os EUA fracassaram em ataque a instalações nucleares iranianas. No ar, voando de Washington para Amsterdã para participar de reunião da OTAN, Donald Trump afirmava merecer nada menos que o Prêmio Nobel da Paz por tudo que tem feito em prol do cessar fogo no Médio Oriente e na Ucrânia.

Diante do quadro, sem saber se rir ou chorar, segui o conselho do filósofo português Agostinho Silva. Ele ensinava que, em tempos de crise de valores, quando a força da mentira ameaça sobrepujar o poder da verdade, é preciso retornar aos clássicos.

E lá fui eu, me lembrar da peça O Soldado Fanfarrão (Miles Gloriosus), de Plauto (século 2 da nossa Era), cuja moral gira em torno da crítica à arrogância, à fanfarronice e à vaidade vazia, especialmente dos que ostentam poder ou status sem ter mérito real. Na comédia, o protagonista, o soldado Pirgopolinices, é um típico fanfarrão: se gaba de sua beleza, valentia e conquistas amorosas, mas na realidade é ridicularizado e enganado por personagens mais astutos, como o escravo Palestrião. No final, o soldado é exposto ao ridículo e enganado, mostrando que a presunção e o orgulho excessivo levam, inevitavelmente, à humilhação.

Plauto me trouxe algum conforto, mas é muito provável que os três protagonistas do atual conflito jamais tenham ouvido falar dele e muito menos assistido à encenação das suas geniais dramaturgias. À parte as razões evidentes do líder iraniano, pois foi ele o primeiro a ser atacado, Trump, Netanyahu e Khamenei são exatamente isso: soldados fanfarrões. Três políticos de vocação autocrata que, como tais, executam governos fortemente marcados pelo uso sistemático da mentira, da desinformação e do engano como estratégia política central. Os três compartilham traços autocráticos, embora atuem em contextos políticos muito diferentes e em graus distintos. Façamos uma breve análise de cada caso separadamente:

1. Donald Trump (EUA)

Contexto: Democracia formal, mas sob crescente tensão institucional durante sua presidência (2017-2021, e agora).

Traços Autocráticos:

  • Deslegitimação da imprensa (“fake news”, “inimigos do povo”)
  • Tentativas de minar a credibilidade das eleições (recusa em aceitar derrota em 2020, alegações falsas de fraude)
  • Concentração de poder em torno de si e lealdade pessoal.Incitação à violência política (ex.: ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021).

Conclusão: Trump só não governou como autocrata pleno, devido aos freios institucionais dos EUA, mas demonstrou intenções e práticas autoritárias claras, o que muitos analistas chamam de “populismo autoritário” ou “autocratização via eleições”.

2. Benjamin Netanyahu (Israel)

Contexto: Democracia parlamentar com tradição institucional, mas em crise recente.

Traços Autocráticos:

  • Tentativas de enfraquecer o Judiciário (propostas de reforma judicial para reduzir poder dos tribunais)
  • Concentração de poder em coligações de extrema-direita e religiosas.Retórica de demonização de opositores e da imprensa
  • Acusações de corrupção pessoal enquanto no poder (no momento está sendo julgado pelo judiciário do seu país)
  • Políticas repressivas em relação aos palestinos, com características de apartheid, segundo algumas organizações internacionais.

Conclusão: Atua dentro de uma democracia, mas com estratégias típicas de líderes autocráticos, principalmente no enfraquecimento das instituições de freio e contrapeso.

3. Ali Khamenei (Irã)

Contexto: Regime teocrático autoritário consolidado.

Traços Autocráticos:

  • Poder absoluto como "Líder Supremo", acima do presidente e parlamento
  • Repressão sistemática à oposição, imprensa e protestos
  • Controle religioso e ideológico sobre o Estado e a sociedade
  • Violações frequentes dos direitos humanos.Processo eleitoral controlado e com candidatos filtrados pelo regime.

Conclusão: É um autocrata clássico, com o poder concentrado e sustentado por repressão e estrutura teocrática.

Todo líder com vocação autocrata cultiva o caos e a desconfiança. Sua estratégia de base não consiste apenas em mentir, mas criar um ambiente onde:

  • Ninguém sabe mais no que acreditar;
  • As instituições democráticas perdem credibilidade

Como é típico em todo e qualquer regime autoritário, não importando a sua coloração ideológica, o próprio líder autocrata aparece como o único “filtro confiável” da verdade. Todos lançam mão da mentira como tática autoritária. Analistas políticos e historiadores, como Timothy Snyder, autor de “Sobre a Tirania”, apontam que: “O uso sistemático da mentira, especialmente da mentira descarada e repetida, é um recurso clássico para enfraquecer a democracia e preparar o terreno para o autoritarismo.”

As consequências desses governos que não apenas recorrem à mentira ocasionalmente, mas fazem dela um pilar estratégico de sua atuação política são deletérias para as sociedades que governam. Um governo baseado na mentira e no engano tem efeitos rápidos e concretos na erosão da confiança nas instituições, no radicalismo da base eleitoral e na polarização extrema das sociedades que estão sob o seu comando.

Em regimes de vocação autoritária a mentira é usada como uma das principais ferramentas de controle social. Ela não serve apenas para enganar, mas para desorientar e desestabilizar a percepção da realidade. Quando as pessoas não sabem mais o que é verdade ou mentira, tornam-se mais vulneráveis à manipulação;menos confiantes nas instituições democráticas; mais dependentes do líder carismático como única “fonte confiável”.

Não à toa Trump, Netanyahu e Khamenei (mas também Bolsonaro, Orbán, Putin e centenas de outros no passado e no presente) repetem incessantemente que “a imprensa é inimiga do povo”. Ao minar a confiança na mídia independente, eles tentam se tornar o único intérprete legítimo da realidade. Para eles, mentir não é apenas um vício, é uma estratégia. O uso sistemático da mentira não visa apenas esconder a verdade: visa destruir a confiança coletiva, desorientar, radicalizar e concentrar poder.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Rumo ao tri: Brasil 247 concorre ao Prêmio iBest 2025 e jornalistas da equipe também disputam categorias

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Cortes 247

Carregando anúncios...
Carregando anúncios...