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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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Gaza dos grandes silêncios e dos pequenos pés

Enquanto você lê isso, uma mãe em Gaza reconhece o corpo de seu filho por um sapato que ela mesma amarrou pela manhã

Crianças mortas em Gaza (Foto: Reuters)

Enquanto você lê isso, alguém está escolhendo um filtro para uma foto no Instagram. Enquanto você lê isso, uma mãe em Gaza reconhece o corpo de seu filho por um sapato que ela mesma amarrou pela manhã, naquele tempo que parece uma eternidade, quando ainda existia manhã.

O mundo gira em velocidades diferentes. Aqui, corremos atrás de notificações que piscam na tela como vaga-lumes digitais. Lá, o tempo parou no momento exato em que um sapato pequeno se tornou a única certeza em meio ao caos, a única verdade que resta quando tudo o mais vira pó.

Ela segurava aquele pé pequeno há poucos anos, contando dedos como quem conta tesouros. “Um, dois, três…” e o riso dele ecoava pela casa. Agora, conta apenas silêncios. Agora, o sapato é maior que todas as palavras do mundo, mais pesado que todos os discursos, mais verdadeiro que todas as promessas.

Nós, do lado de cá da tela, analisamos “atualizações”. Curtimos, compartilhamos, comentamos. Transformamos tragédias em conteúdo, dor em dados, lágrimas em estatísticas. Mas como se quantifica o peso de um sapato nas mãos de uma mãe? Como se mede a distância entre o nascimento e a morte quando cabem numa única vida pequena?

O passado que ela sente falta não é nostálgico - é presente interrompido, futuro roubado. É a memória de pequenos pés correndo pela casa, de sapatos espalhados pela sala, de brigas bobas sobre amarrar o cadarço. Agora, o sapato é monumento, é lápide, é tudo o que restou de uma história que mal começou.

Há quem diga que não devemos nos deixar abater, que a vida continua, que é preciso seguir em frente. Mas como seguir quando o mundo se dividiu entre aqueles que vivem e aqueles que apenas sobrevivem? Como continuar quando a nossa pressa em “atualizar” se tornou obscena diante da necessidade dela de simplesmente respirar?

Ela o viu nascer para que pudesse estar presente na sua morte. Não é assim que deveria ser. Não é assim que prometemos que seria. Mas é assim que é, e o sapato ali, pequeno e terrível, nos lembra que enquanto filosofamos sobre a existência, algumas pessoas a perdem pedaço por pedaço.

Em Gaza, não há duas dores iguais, mas todas têm o mesmo peso: o peso de um mundo que esqueceu como abraçar o presente, como proteger o futuro, como honrar a vida que pulsa antes de se tornar memória.

O sapato fica. A mãe fica. A dor fica.

E nós? Nós seguimos atualizando, numa velocidade que não consegue mais alcançar o que realmente importa: o momento frágil e precioso em que a vida ainda é possível, em que ainda há tempo de amarrar o sapato, de contar os dedos, de dizer “eu te amo” antes que seja tarde demais.

Talvez a verdadeira atualização seja essa: parar de correr atrás do que muda para abraçar o que permanece. O amor permanece. A memória permanece. A responsabilidade de cuidar uns dos outros permanece.

Mesmo quando só resta um sapato para contar a história toda.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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