Garimpo
Questão de vida ou morte, a coleta seletiva devia ser obrigatória, assim como o uso do cinto de segurança
Animada, não; animada é pouco. A festa junina de minha vizinha, num pequeno quarto e sala, foi esfuziante. Quem me garante, não é a dança da quadrilha na madrugada ou o entra e sai de gente fantasiada.
Já é segunda-feira de manhã e o que me dá essa certeza está num canto do hall que separa nossos apartamentos: nove garrafas de vinho, pelo menos três dúzias de latas de cerveja e refrigerante, embalagens de óleo de soja, caixas de papelão lotadas de bandeirinhas coloridas.
Vidro. Plástico. Alumínio. Papel.
Tudo limpo, seco, bem embalado e separado para a coleta seletiva.
“É o meio-ambiente, estúpido!” Ouço uma voz sem dono entre a porta de casa que acabo de fechar e a escada que começo a descer.
A vizinha consciente é minoria, infelizmente. Em nosso prédio é comum ver aquele papel duro das caixas de leite, copos descartáveis, frascos de vidro e potes de plástico misturados a papel higiênico usado e resto de comida.
A gente sabe, ou devia saber, que reciclar ou reutilizar esses materiais e embalagens é vital para todos nós. Não só porque economizamos a energia que será gasta para produzir estes mesmos objetos, mas também porque jogar o reciclável no lixo comum significa aumentar a poluição no planeta, agravar o aquecimento global, diminuir a qualidade de vida. Ou a crise climática é invenção?
A parte mais informada da sociedade sabe da importância, mas ignora. Despeja o lixo como se dissesse para si mesma: “agora o problema não é mais meu.”
Em São Paulo, é vergonhoso que o mesmo prefeito que gasta milhões em publicidade para se reeleger, não invista em campanhas para conscientizar a população sobre a importância da reciclagem e do reuso.
A prefeitura sabe que o descuido com o meio-ambiente provoca doenças, enchentes e mortes. Mesmo assim, trata a coleta seletiva como questão menor.
Ricardo Nunes não é exceção, nos últimos 25 anos não lembro de um projeto para o aproveitamento inteligente do lixo na cidade.
Uma triste combinação de miséria, desorganização e sujeira se repete todo dia no bairro em que moro, a Vila Buarque. Quando os sinos tocam e o relógio marca seis da tarde começa uma discreta correria. Porteiros de prédios, comerciantes e moradores colocam os rejeitos na calçada. Nesse momento, surgem da escuridão homens esquálidos e mulheres descalças.
Todos famintos, maltrapilhos e com o mesmo objetivo: abrir os sacos de lixo. Dali de dentro, com incrível agilidade e sabedoria, esses “garimpeiros do asfalto” retiram o que a classe média insiste em dispensar no lixo comum.
Os catadores transferem tudo que tem algum valor para outros sacos e correm para vender a sucata. Para trás, deixam sacos abertos e sujeira espalhada pelas calçadas e asfalto.
Não é mais saudável e inteligente organizar a coleta, dar dignidade a essas pessoas e estimular a sociedade a separar o lixo?
O homem que acabo de encontrar numa tarde de sol recicla tudo que pode. Ele acaba de almoçar no restaurante Bom Prato, que oferece almoço a um real e me conta que sustenta quatro filhas com a coleta diária.
O quilo do papelão custa irrisórios trinta centavos, isso mesmo: trinta centavos! É preciso recolher duas toneladas para juntar seiscentos reais por semana. E ele consegue. Sabe os pontos certos, conhece as empresas, horários de descarte, e faz várias viagens por dia com a carroça lotada. Também pega plástico, que vende a um real o quilo. Trabalha de segunda a sábado com sua carroça e só volta para casa, numa ocupação no centro, quando atinge a meta.
Fala com orgulho que nunca pediu esmola, que trabalha para limpar a cidade e melhorar de vida.
No fim da nossa conversa, se apresenta: “Muito prazer, me chamo Renasci.”
Se um dia a prefeitura paulistana quiser aprender a limpar de verdade a cidade, pode começar por ele: o professor Renasci.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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