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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC) e do INCT em Disputas e Soberania Informacional.

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Galípolo e o fantasma do desenvolvimentismo

Indicado por Lula e visto como promessa de renovação técnica, Galípolo se rende à lógica do mercado e defende a ampliação da autonomia do Banco Central

Gabriel Galípolo (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O novo operador da velha sabotagem.

Gabriel Galípolo não é um nome qualquer na cena econômica brasileira. Indicado por Lula ao cargo de diretor de Política Monetária do Banco Central, Galípolo chegou ao posto cercado de expectativa por parte do campo progressista. Era visto como uma possível ponte entre o governo e uma transição técnica capaz de recompor os rumos da política monetária após o desastre representado por Roberto Campos Neto. Com uma trajetória marcada por vínculos com o pensamento desenvolvimentista e por uma atuação relativamente sensata em meio ao caos fiscal promovido pelos governos Temer e Bolsonaro, Galípolo parecia representar uma chance real de reverter a lógica do rentismo que domina o Banco Central desde sua “autonomia formalizada” pela PEC 106/2019, aprovada sob forte pressão do mercado.

Mas como em outros momentos decisivos da história nacional, a esperança foi traída de dentro. Nas últimas semanas, Galípolo veio a público defender a aprovação da PEC 65, que não apenas consolida a independência do Banco Central como avança ainda mais no esvaziamento do poder democrático sobre a política monetária. Ao se aliar ao discurso técnico da neutralidade e ao consenso neoliberal que opera na Faria Lima e nas salas refrigeradas do capital especulativo, Galípolo rompe com o projeto de desenvolvimento soberano que o levou ao cargo. Mais do que uma mudança de postura, trata-se de uma adesão consciente à sabotagem que há décadas impede o Brasil de retomar um projeto nacional, produtivo e inclusivo.

A independência do Banco Central nunca foi neutra. Ao contrário do que sustenta o discurso liberal, essa estrutura serve para blindar os interesses do mercado e garantir que nenhuma política econômica, por mais legítima e democrática que seja, ouse confrontar os dogmas do rentismo. Nesse sentido, a fala de Galípolo escancara um problema mais profundo: a presença de operadores do mercado travestidos de técnicos, que atuam por dentro do Estado para impedir que ele cumpra seu papel estratégico no desenvolvimento do país. O artigo parte deste ponto para mostrar que a guerra contra o desenvolvimentismo brasileiro não é apenas midiática, judicial ou ideológica. Ela também é institucional, e seus agentes se multiplicam nas engrenagens do próprio governo.

De promessa progressista a defensor do rentismo.

A trajetória de Gabriel Galípolo até o Banco Central foi construída com base em uma imagem de técnico sofisticado, crítico das ortodoxias do mercado e alinhado ao campo desenvolvimentista. Formado em economia pela PUC-SP e com passagens por instituições como o Banco Fator e a Secretaria de Fazenda de São Paulo, Galípolo foi ganhando espaço em debates econômicos como uma voz ponderada, muitas vezes próxima de figuras do campo progressista, como André Lara Resende e outros economistas críticos à hegemonia fiscalista da Faria Lima. Durante os anos de desmonte promovido pelas gestões Temer e Bolsonaro, chegou a tecer críticas à paralisia do investimento público e aos dogmas monetaristas que sufocavam o crescimento. Suas colunas e entrevistas apontavam para uma compreensão ampla dos limites da política econômica ortodoxa, alimentando a expectativa de que pudesse protagonizar uma virada técnica no Banco Central, a partir de dentro.

Quando foi indicado por Lula, parte significativa da base progressista enxergou em sua nomeação um gesto estratégico: abrir uma brecha dentro da máquina do BC para tentar mudar os rumos da política monetária sem romper, de imediato, com a institucionalidade imposta pela PEC da autonomia. Galípolo era visto como uma espécie de cavalo de Troia do desenvolvimentismo, alguém que, com trânsito técnico e respeitabilidade entre setores do mercado, poderia desconstruir a lógica de juros estranguladores e abrir espaço para uma atuação compatível com o projeto econômico do terceiro governo Lula. O próprio Lula, em diversas ocasiões, sinalizou descontentamento com a autonomia do BC e criticou abertamente a manutenção de juros altos como sabotagem à retomada econômica. A nomeação de Galípolo foi interpretada como uma peça-chave nessa disputa.

No entanto, o que se viu nos últimos meses foi o oposto do esperado. Galípolo não só manteve um discurso de conciliação com o mercado como passou a defender publicamente a PEC 65, que amplia ainda mais a autonomia do Banco Central e transforma a instituição em uma ilha blindada à soberania do voto popular. A proposta, apoiada por figuras como Campos Neto, institucionaliza a perpetuação do modelo monetário que sufoca o investimento público, sacrifica o emprego e inviabiliza qualquer projeto de reindustrialização ou reconstrução nacional. O que era para ser um técnico em disputa virou mais um operador do consenso neoliberal.

A guinada não pode ser interpretada como um erro isolado. Ela é parte de uma engrenagem mais ampla de cooptação e captura institucional promovida pelos interesses do rentismo. Ao aderir à lógica da "responsabilidade técnica" desvinculada do projeto político e social de desenvolvimento nacional, Galípolo se insere na longa tradição de técnicos que traem o povo em nome de uma suposta neutralidade. A diferença agora é que essa traição vem disfarçada de sofisticação e legitimada por uma retórica que se apresenta como moderna e reformista. Na prática, porém, o que se promove é o velho receituário da subordinação financeira e da sabotagem da soberania.

A armadilha da autonomia do Banco Central: independência de quê e para quem?

A “autonomia” do Banco Central é, há décadas, apresentada como um selo de credibilidade perante os mercados. Vendida como uma medida técnica e civilizatória, ela é, na prática, um dos instrumentos mais sofisticados de dominação do projeto nacional pelas engrenagens do capital financeiro. Desde a aprovação da Lei Complementar 179/2021, que institucionalizou o mandato fixo para o presidente do BC, o Brasil vive um regime em que o poder monetário se tornou independente do voto popular, mas absolutamente dependente da lógica rentista que governa a Faria Lima e Wall Street. A PEC 65, agora defendida por Galípolo, aprofunda esse mecanismo, transformando o Banco Central em uma instituição ainda mais blindada, que escapa não só do controle democrático como também da articulação com qualquer projeto de desenvolvimento econômico.

A pergunta que se impõe é simples, mas devastadora: independência de quem? E para servir a quem? O Banco Central brasileiro, ao contrário do que prega o discurso liberal, não é uma ilha técnica acima dos interesses. É um operador ativo da lógica de valorização financeira que se alimenta da estagnação do país. Sua independência real é da política fiscal expansiva, do investimento público, da industrialização, da geração de empregos e do aumento do poder de compra da população. Em contrapartida, sua dependência absoluta é da confiança dos investidores estrangeiros, das agências de rating e dos interesses de quem lucra com a ciranda financeira alimentada pelos juros mais altos do mundo.

A armadilha dessa independência é que ela retira da arena política – onde o povo ainda pode intervir por meio do voto – o poder de definir os rumos da economia. A política monetária deixa de ser uma ferramenta do Estado para se tornar um dogma intocável. Qualquer tentativa de romper com esse pacto implícito é imediatamente criminalizada como populismo, irresponsabilidade ou ameaça à estabilidade. É esse consenso autoritário, fabricado sob o rótulo da técnica, que Galípolo agora ajuda a consolidar. Ao defender a PEC 65, ele legitima um projeto de país que só serve ao capital especulativo e aos interesses internacionais.

Esse modelo também sabota diretamente a capacidade de ação do governo Lula. A manutenção de juros estratosféricos, mesmo com inflação sob controle, limita o crescimento, encarece o crédito, desestimula o investimento produtivo e corrói a credibilidade das políticas sociais. O Estado se vê de mãos atadas diante da urgência de investir em infraestrutura, habitação, reindustrialização e transição energética. Toda e qualquer política que demande expansão fiscal passa a ser vista como um risco, enquanto a fome, o desemprego e a desindustrialização se aprofundam em nome da tal “autonomia”.

Ao escancarar sua adesão à PEC 65, Galípolo deixa claro que não está disposto a romper esse pacto de submissão. Pelo contrário, atua para torná-lo ainda mais profundo e irreversível. O discurso da neutralidade monetária esconde a mais política das decisões: a escolha de quem deve pagar o preço da estabilidade. E no Brasil de hoje, como nos últimos 40 anos, esse preço recai sempre sobre os mesmos. O povo trabalhador.

O papel da Faria Lima e do sistema financeiro na guerra contra o Brasil desenvolvimentista.

A guerra contra o desenvolvimentismo no Brasil não é conduzida apenas por tanques ideológicos ou campanhas de desinformação. Ela tem uma frente silenciosa, persistente e incrivelmente eficaz: o sistema financeiro e sua tropa de choque instalada na Faria Lima. Mais do que um endereço simbólico, a Faria Lima é hoje um centro de poder que opera como operador ativo da sabotagem ao Estado nacional. Sua lógica é simples e brutal: quanto menos o Brasil cresce, mais segura é a rentabilidade dos seus ativos. Quanto mais o Estado se retrai, mais espaço tem o capital financeiro para se expandir.

Essa engrenagem opera com naturalidade impressionante. Em nome da estabilidade e do controle da inflação, impõem-se juros que destroem a indústria, encarecem o crédito, barram o investimento e matam o consumo. Sob o pretexto da responsabilidade fiscal, exige-se um arcabouço que transforma a política orçamentária em prisão de segurança máxima. A Faria Lima vive de um Brasil imobilizado. Todo projeto que ameaça reindustrializar, fortalecer o Estado ou expandir a base produtiva nacional é imediatamente atacado como populista ou inflacionário.

Galípolo, ao se alinhar a essa lógica, torna-se um agente interno dessa guerra. Não há mais espaço para ingenuidade: não se trata de conciliar com o mercado, mas de se submeter a ele. O entusiasmo com que defende a PEC 65 o alinha diretamente com os interesses que sabotaram os governos desenvolvimentistas desde os anos 2000. Do ataque ao PAC e ao Bolsa Família à demonização dos subsídios industriais do BNDES, cada ofensiva foi construída com o mesmo roteiro: criar pânico inflacionário, mobilizar o discurso técnico e sufocar qualquer tentativa de autonomia nacional.

O sistema financeiro opera como um partido político. Tem seus quadros, seus programas, seus meios de comunicação e seus representantes no Estado. O Banco Central, sob o regime de “autonomia”, tornou-se um dos seus principais braços. Não se trata de exagero. Trata-se de reconhecer que o verdadeiro poder hoje não reside apenas no Palácio do Planalto, mas nas reuniões de comitês de política monetária onde se decide o futuro do país com base na sensibilidade dos mercados, e não nas necessidades da população.

A presença de figuras como Galípolo nessas estruturas é funcional a essa lógica. Ele garante a aparência de diversidade de ideias, ao mesmo tempo, em que reforça os dogmas do financismo. Sua presença serve para amortecer a crítica, legitimar a captura e desmobilizar a resistência. Enquanto isso, o Brasil segue empacado, com um Estado enfraquecido e uma sociedade sufocada por um modelo econômico que serve a menos de 1% da população.

O fantasma resiste, mas está sob ataque interno.

O Brasil vive um momento decisivo. Enquanto a população tenta recuperar o fôlego após anos de desmonte, precarização e miséria institucionalizada, o governo democraticamente eleito busca reerguer o país com base em um projeto que coloca o desenvolvimento no centro da agenda. Mas esse projeto não caminha em terreno neutro. Ele enfrenta obstáculos estruturais, sabotagens sistemáticas e, cada vez mais, traições internas. A adesão de Gabriel Galípolo à PEC 65 não é apenas um gesto isolado. É um símbolo do grau de enraizamento que o financismo atingiu dentro do próprio Estado.

A guerra contra o desenvolvimentismo nunca cessou. Ela apenas mudou de forma. Se nos anos 2000 o inimigo era o “populismo fiscal” e os programas sociais, hoje o alvo é qualquer tentativa de reconstrução produtiva do país. A autonomia do Banco Central, longe de representar um avanço institucional, é um dos instrumentos mais sofisticados para impedir a emergência de um Brasil soberano, industrializado, justo e autônomo. A sua ampliação, como propõe a PEC 65, institucionaliza o veto permanente ao futuro. Um veto que já não precisa mais do Congresso ou da imprensa. Basta o silêncio de uma diretoria reunida em Brasília para paralisar o país inteiro.

É nesse cenário que a figura de Galípolo se torna emblemática. Ele não apenas traiu a expectativa de quem o viu como uma alternativa técnica ao caos de Campos Neto. Ele traiu, acima de tudo, o projeto de reconstrução nacional que ainda resiste, com dificuldade, nos marcos do terceiro governo Lula. Sua defesa da autonomia ampliada do Banco Central o alinha, consciente ou não, com os interesses da Faria Lima, dos fundos de investimento e das potências estrangeiras que sempre temeram um Brasil forte e soberano.

O fantasma do desenvolvimentismo continua a assombrar os corredores do poder. Mas não como ameaça ao povo. Ele é, na verdade, a esperança de milhões de brasileiros que sabem que outro país é possível. Um país que invista em ciência, tecnologia, educação, reindustrialização e justiça social. Um país que não aceite ser governado pela lógica dos juros altos, da fome planejada e da estagnação como destino. Esse fantasma é a lembrança viva de que, quando o Estado assume seu papel de indutor do desenvolvimento, o Brasil cresce, gera empregos e se impõe no mundo.

Mas para que esse fantasma deixe de ser apenas uma lembrança e volte a ser projeto, é preciso coragem. Coragem para romper com a chantagem do mercado. Coragem para denunciar os traidores do povo, mesmo quando eles vestem a máscara da técnica. Coragem para dizer, com todas as letras, que nenhum país será soberano enquanto sua política monetária estiver sequestrada pelos interesses do rentismo.

Se o Brasil quiser voltar a sonhar grande, precisará recuperar o controle sobre o seu próprio destino. E isso começa por derrubar os muros que isolam o Banco Central da democracia. O fantasma do desenvolvimentismo não pode ser exorcizado. Ele precisa ser convocado de volta à luta.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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