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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Fim da fila

Nas filas da vida, o mais importante era não ser o último

Imagem ilustrativa (Foto: Pixabay Free)

Pagava as contas com notícia. Primeiro no rádio, depois na TV. Fernando - vamos chamá-lo assim - era repórter.

Desde o início da carreira, mostrou duas virtudes muito particulares: não tinha medo de perguntar e não tinha vergonha de perguntar de novo quando não entendia. Dizia para si mesmo: “se eu não entendi pode ser que outras pessoas também não compreendam. E elas querem se informar.”

Fernando entrevistava uma dona de casa, um louco ou um bêbado, com a mesma naturalidade com que fazia perguntas a Ulysses Guimarães ou Fernanda Montenegro.

Com onze anos de profissão, pai de filho e filha, recebeu um convite:

- Que tal trabalhar numa TV maior, com mais alcance e mais investimento no Jornalismo?

Antes de dizer o sim, ouviu a ressalva:

- Só que a vaga não é de repórter, é de editor.

Fernando não escondeu a vaidade.

- Peraí, vou largar o vídeo e me esconder na redação?

- Você vai ser sempre jornalista, Fernando. Só muda a função. O editor é quem seleciona o melhor da reportagem, é quem bota as notícias no ar. Sem ele não tem jornal.

- Ainda não entendi direito.

- Pensa num time de futebol, você é o beque, bate um bolão. Só que o técnico precisa é de um ponta-esquerda.

Fernando pediu a opinião do pai, ouviu amigos e respondeu.

- Vou ficar onde estou, muito obrigado.

- Que pena.

Aí, Fernando soube que na TV pública em que trabalhava, o principal telejornal ia acabar e parte da redação seria demitida.

O repórter engoliu a vergonha, o medo de ouvir um não e ligou de volta.

- Ainda dá tempo de mudar de ideia?

- Ô meu ponta-esquerda, é claro. Passa aqui amanhã e traz os documentos. Você vai ser editor de texto do maior telejornal do Brasil.

Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto
Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luis Cosme Pinto(Photo: Reprodução)Reprodução

A promessa de uma ambientação para conhecer os colegas e o telejornal foi cumprida, mas era pouco para o aprendiz. A primeira reportagem que editou - uma simples blitz do Procon, sem grandes consequências, foi desastrosa.

A repórter cumpriu seu papel e gravou tudo o que era necessário, mas Fernando se atrapalhou com as fitas, se perdeu nas anotações. Faltava pouco para o jornal entrar e nada da matéria ficar pronta.

A editora-chefe interveio, outro editor socorreu e, sob muita tensão, a primeira reportagem editada por Fernando ia ao ar. A segunda, a terceira e muitas outras também foram dificílimas, sofridas.

Na sessão de terapia, Fernando chorou com a melancolia dos arrependidos. “Como repórter eu era solução, como editor virei problema.”

Da cadeira de couro, a doutora baixou os óculos e cruzou as pernas.

- Calma lá, hoje você é o último da fila. Daqui a pouco chega alguém mais novato e você avança. Por enquanto, está aprendendo. Um dia será professor.

Ansioso, como 100% dos jornalistas, ele não via os progressos que outros já percebiam. Numa segunda-feira, a chefe da equipe chamou Fernando dobrando o dedo indicador. Ele pensou no pior, mas lá dentro da sala envidraçada ouviu que uma nova e inexperiente editora iria cobrir férias e que ele devia ajudá-la.

Com cinco meses de casa, a primeira promoção! Fernando passava a ser “o penúltimo da fila.”

Até a doutora comemorou.

O tempo cumpriu sua missão, os colegas ajudaram e logo ele avançou para antepenúltimo. Depois, passou a chefiar outro jornal e daí ascendeu para projetos ainda mais desafiadores. “O ponta-esquerda”, enfim, se tornara um dos craques daquela seleção.

A ideia da posição na fila nunca o abandonou. Noite dessas, não havia mais ingressos para um show no Sesc. Fernando e a namorada arriscaram ir para o guichê em busca de uma desistência. Havia 5 pessoas na frente e, de novo, ele era o último da fila. Pessimista, achou a espera inútil. Então outro casal chegou. E mais um. E outro. Já eram 16 pessoas atrás dele e da namorada. A surpresa: todos entraram.

Passou a perceber que era assim também na fila do pão, na fila da vacina. Nas filas da vida, o que contava para ele era não ser o último.

De olho na boa forma, se matriculou no Pilates. Só não entendia as orientações das professoras: “desenrola a coluna”, “posição de Frog”, “cresce os ombros”, “estica a ponte”. Diante do estranho dialeto, copiava o que os colegas faziam, entortando o pescoço.

Anteontem, um homem corpulento se apresentou e a professora chamou Fernando.

- Vou dar uma atenção ao Valdir. Ele não sabe nada, está começando hoje. Faça suas séries sozinho.

Fernando, de novo, o penúltimo da fila. Fernando, de novo, promovido.

No vestiário, encontrou o olhar curioso de Valdir, o último da fila. Fernando “expandiu as costelas” e saiu em largas passadas.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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