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Ivan Rios

Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia

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"Cuba exporta médicos, não bombas"

O embargo contra Cuba não é uma questão de direitos humanos ou democracia. É uma punição contra qualquer nação que ouse seguir um caminho anticapitalista

Bandeira de Cuba (Foto: Reuters/Gary Cameron)

O paradoxo da solidariedade criminalizada - Como explicar que uma nação sem histórico de agressão militar, que envia médicos ao invés de mísseis, permaneça há mais de seis décadas sob um dos embargos econômicos mais longos e severos da história moderna? Cuba, uma ilha sinônimo de diplomacia médica, avanços educacionais e solidariedade internacional, é tratada como ameaça global. Enquanto isso, potências diretamente envolvidas em guerras, ocupações e violações sistemáticas de direitos humanos continuam blindadas por alianças geopolíticas cínicas e perversas. Este artigo propõe uma análise crítica, filosófica e geopolítica desse paradoxo que escancara a hipocrisia internacional.Cuba: um exército de jalecos brancos - Desde a década de 1960, Cuba tem transformado seu sistema de saúde pública em um projeto de solidariedade internacional. Fidel Castro chamava essa força de trabalho humanitária de “exército de jalecos brancos”. Estima-se que mais de 400 mil profissionais cubanos de saúde tenham atuado em mais de 160 países, oferecendo cuidados médicos onde antes só havia abandono.

No Brasil, a atuação cubana ganhou destaque a partir de 2013 com o programa Mais Médicos. Milhares de profissionais cubanos atenderam populações vulneráveis em áreas remotas, onde médicos brasileiros historicamente se recusaram a trabalhar. Foram às aldeias indígenas, aos interiores esquecidos do Norte e do Nordeste, às periferias urbanas. Levaram saúde, dignidade e esperança.

O fim do Mais Médicos: ideologia acima da vida - Em 2018, o Brasil assistiu ao desmonte abrupto de um dos mais impactantes programas de saúde pública de sua história recente. A saída dos médicos cubanos não foi apenas uma disputa contratual. Foi uma decisão profundamente ideológica, orquestrada por um governo que, desde a campanha eleitoral, demonizava tudo que tivesse qualquer vínculo com Cuba ou com políticas sociais de origem progressista.

O então presidente Jair Bolsonaro liderou um ataque simbólico contra os médicos cubanos. Chamou-os de “escravos do regime”, insinuou que eram agentes ideológicos infiltrados, e exigiu que todos passassem pelo Revalida, um exame que sequer muitos médicos brasileiros formados no exterior conseguem ou tentam realizar. O objetivo não era melhorar a saúde pública, mas fazer guerra cultural, travar um combate político contra qualquer legado da esquerda.

A desconstrução da solidariedade: a retórica da hostilidade - Ao transformar a saúde pública em território de disputa ideológica, o governo Bolsonaro optou por sacrificar vidas em nome de um discurso patriótico vazio. A medicina cubana virou alvo de um revisionismo político que ignorava a realidade: aqueles médicos estavam salvando vidas em regiões onde nenhum outro profissional de saúde queria estar.

Por trás dessa decisão, havia uma intenção clara: desconstruir os símbolos de solidariedade internacional que evocassem o socialismo e o legado de governos anteriores. O custo humano dessa decisão foi catastrófico.

As consequências visíveis: o silêncio nas comunidades abandonadas - Com a saída dos cubanos, mais de 28 milhões de brasileiros ficaram desassistidos. Em centenas de municípios, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e em comunidades indígenas, nenhum médico brasileiro se candidatou para ocupar os postos deixados vagos. Mesmo com incentivos financeiros, a lacuna permaneceu.

O resultado foi o fechamento de unidades básicas de saúde, o retorno de doenças anteriormente controladas e, principalmente, o aprofundamento do sofrimento de populações historicamente negligenciadas. A ausência de profissionais transformou o direito à saúde em um privilégio ainda mais distante para os mais pobres, os negros, os indígenas, os invisíveis ao olhar das urnas e das elites.

O embargo: a punição da dignidade - Se a política interna brasileira já se mostra desumana em sua hostilidade contra a medicina cubana, o cenário internacional é ainda mais absurdo. O embargo econômico imposto pelos Estados Unidos contra Cuba, formalizado em 1962, é um dos mais brutais da história contemporânea.

O bloqueio foi justificado inicialmente pela nacionalização de empresas americanas após a Revolução Cubana. Desde então, foi reforçado por legislações como a Lei Helms-Burton, que extrapola as fronteiras americanas e penaliza empresas estrangeiras que tentem negociar com a ilha.

O impacto humanitário é devastador. O embargo limita o acesso de Cuba a medicamentos, alimentos, peças de equipamentos médicos e tecnologias essenciais. Cirurgias são adiadas por falta de insumos básicos. Crianças com doenças raras ficam sem tratamento por falta de medicamentos que o embargo impede de chegar.

A falácia da moralidade seletiva - A justificativa oficial para manter Cuba na lista de países que “apoiam o terrorismo” inclui acusações frágeis como “falta de democracia” e “violações de direitos humanos”. Mas essa régua moral é claramente seletiva. O mesmo governo que denuncia Cuba por supostas violações financia e apoia regimes autocráticos em outras partes do mundo, desde que esses regimes sejam aliados estratégicos.

A manutenção do embargo revela que o verdadeiro crime de Cuba foi desafiar o modelo neoliberal e construir uma alternativa socialista, centrada em saúde, educação e soberania nacional. O embargo é, antes de tudo, uma punição ideológica.

Israel e o silêncio cúmplice - O contraste mais gritante desse duplo padrão internacional é a relação com Israel. Enquanto Cuba, que exporta médicos e vacinas, é sufocada economicamente, Israel, que exporta drones armados e tecnologias de repressão, recebe bilhões de dólares anuais em ajuda militar.

As operações militares israelenses em Gaza têm deixado um rastro de morte, destruição e sofrimento. A ONU já classificou o bloqueio à Faixa de Gaza como uma forma de punição coletiva, em suma, um Genocídio. Hospitais, escolas e civis têm sido alvos de bombardeios sistemáticos. E ainda assim, nenhuma sanção de peso é imposta. Pelo contrário: os EUA continuam a vetar resoluções da ONU que tentem responsabilizar Israel por crimes de guerra.

A assimetria é brutal e indecente. Enquanto Cuba enfrenta restrições até para importar seringas, Israel segue com liberdade para bombardear populações inteiras.

O campo do absurdo: uma reflexão filosófica - Albert Camus, ao discutir o conceito de absurdo, afirmava que ele nasce do choque entre o desejo humano por sentido e o silêncio irracional do mundo. O caso de Cuba é uma encarnação moderna desse absurdo: um país que salva vidas é castigado. Um país que destrói vidas é recompensado.

A epistemologia do poder internacional não é regida por ética universal, mas pela conveniência geopolítica. A defesa dos direitos humanos se tornou um instrumento de manipulação, aplicado de forma seletiva para proteger aliados e punir inimigos ideológicos.

O custo humano: quem paga a conta da geopolítica? - As vítimas desse jogo de interesses são sempre os mesmos: os pobres, os doentes, os marginalizados. Em Cuba, o embargo significa falta de medicamentos, insumos hospitalares e alimentos básicos. No Brasil, o fim da presença médica cubana significou o abandono de milhões de pessoas à própria sorte. Em Gaza, significa crianças mortas sob escombros.

A questão central não é apenas diplomática ou econômica. É profundamente ética. O que estamos presenciando é a consagração de um sistema internacional que escolhe quem pode viver e quem pode morrer, com base em cálculos de poder e lucro.

A inversão moral do século XXI - O mundo está de cabeça para baixo. Cuba exporta médicos, vacinas e solidariedade. Israel exporta drones, bombas e destruição. E, ainda assim, é Cuba quem segue figurando nas listas negras da chamada “comunidade internacional”. O embargo contra a ilha caribenha não é apenas uma política de Estado: é um espelho grotesco que reflete o pior da hipocrisia global. É a institucionalização do absurdo. A normalização da injustiça. A celebração da barbárie travestida de defesa da democracia.

Para tornar esse cenário ainda mais escandaloso, basta recordar o que aconteceu em 2 de novembro de 2023, durante a votação da Assembleia Geral da ONU. Naquele dia, 187 países membros votaram pelo fim imediato do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos contra Cuba. Apenas dois países votaram contra. Dois! Quem foram? Quem? Quem? Justamente os dois maiores exportadores de guerra, sofrimento e morte de inocentes da nossa contemporaneidade: os Estados Unidos e Israel. É o cúmulo do cinismo internacional. Aqueles que mais promovem a destruição, os mesmos que patrocinam conflitos, golpes de Estado e ocupações militares mundo afora, decidiram manter o cerco econômico a um país que envia médicos, não soldados.

É um teatro da desfaçatez. Enquanto o mundo inteiro — incluindo nações com governos de diferentes espectros ideológicos, da Europa à África, da Ásia à América Latina — se posiciona de forma quase unânime contra o bloqueio, os EUA e Israel permanecem obstinados em manter Cuba sufocada. Não por acaso. Ambos têm interesses geopolíticos profundamente enraizados na lógica da dominação. O embargo contra Cuba não é uma questão de direitos humanos ou democracia. É uma punição exemplar contra qualquer nação que ouse seguir um caminho soberano e anticapitalista. É um recado para o resto do mundo: desafie o império e será esmagado.

E o mais perverso é que esse bloqueio criminoso não atinge governos, mas sim o povo cubano. São as crianças cubanas que deixam de receber medicamentos. São os hospitais cubanos que ficam sem equipamentos básicos. São os idosos cubanos que esperam por cirurgias que não podem ser feitas por falta de insumos. O embargo é uma sentença coletiva de sofrimento. Uma violação flagrante dos direitos humanos cometida a céu aberto, com transmissão global, ano após ano, sem que os grandes meios de comunicação se indignem, sem que as potências ocidentais derramem uma lágrima sequer.

Enquanto isso, Israel, parceiro incondicional dos Estados Unidos nessa votação infame, segue matando civis em Gaza, destruindo escolas, hospitais e campos de refugiados com a conivência das potências ocidentais. O contraste não poderia ser mais obsceno. Um país que bombardeia hospitais recebe bilhões em ajuda militar. Outro que envia médicos para salvar vidas é sufocado economicamente. O que mais é preciso para que o mundo reconheça que a lógica vigente não é de justiça, mas de dominação? Que o critério que separa “bons” e “maus” na diplomacia internacional não é o compromisso com a paz, mas a submissão ao poder imperial?

Se a humanidade ainda deseja olhar para o futuro com alguma dignidade, é urgente inverter essa lógica perversa. É preciso romper o silêncio cúmplice. Desmascarar a farsa moral que sustenta o bloqueio contra Cuba e a impunidade criminosa de regimes que vivem da guerra, da ocupação e da destruição de povos inteiros. O que está em jogo aqui é mais do que Cuba. É a própria credibilidade do sistema internacional. É a luta pelo direito de uma nação existir, decidir seu próprio destino e oferecer ao mundo o que tem de melhor: vida, solidariedade, ciência e humanidade.

Porque, como disse Fidel Castro, com a autoridade de quem fez de um pequeno país um farol de dignidade para os povos oprimidos do mundo:“Cuba exporta médicos, não bombas.”

E isso deveria ser motivo de honra — nunca de punição.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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