Burocracia: o eufemismo para o fim dos direitos
O governador Wanderlei Barbosa tem recorrido a um eufemismo, o de “quebrar a burocracia”, para defender um desenvolvimentismo anacrônico
Nesta sexta-feira, 27 de junho de 2025, presenciamos em Araguatins, no coração do Bico do Papagaio, uma cena que, por sua densidade simbólica, mereceria um estudo aprofundado nos anais das ciências sociais brasileiras. De um lado do palanque, o presidente Lula, celebrando o programa “Terra da Gente”, uma iniciativa que, em seu cerne, busca promover a justiça social através da distribuição de terras, um aceno à reparação histórica de conflitos agrários que ensanguentaram aquela mesma região do Tocantins. Do outro, o anfitrião, governador Wanderlei Barbosa (Republicanos), um aliado. Tudo transcorria na liturgia esperada desses eventos, até que o não dito, o subtexto, a agenda prévia deste, se impôs sobre a retórica oficial.
Apelando ao presidente da Lula, em referência desrespeitosa aos direitos dos indígenas, que estavam ali presentes, o governador Wanderlei Barbosa pediu, textualmente: “Eu queria pedir ao senhor que nos ajudasse a quebrar essa burocracia, que a gente pudesse ter as licenças para fazer o asfalto de Tocantinópolis a Maurilândia e de Tocantínia para Palmas. ” Embora as palavras exatas possam ter sido afagadas pela diplomacia da ocasião, a simples presença do governador naquele palco, ladeando o presidente, dava um ar de dissonância quase performática. Este mesmo governador, meses antes, conforme noticiado amplamente, declarava publicamente sua intenção de levar adiante, “a qualquer custo”, a pavimentação de uma rodovia que rasga terras indígenas, a TO-010. Na ocasião, o imbróglio com a Funai e o Ibama foi tratado como um mero detalhe a ser superado.
Esta contradição serve de ponto de partida: um evento federal que se propõe a ser um marco da justiça fundiária serve de cenário para a celebração de uma aliança política com quem vê as salvaguardas constitucionais dos povos originários como um empecilho ao “progresso”. É a materialização de um conflito de visões de mundo que habita o seio da formação do Brasil e não poderia ser diferente com o governo Lula e de sua heterogênea base de apoio.
O governador, em suas manifestações anteriores sobre o tema, recorreu a um eufemismo que se tornou uma espécie de mantra no vocabulário de certo desenvolvimentismo anacrônico: a necessidade de “quebrar a burocracia”. É uma escolha retórica brilhante em sua capacidade de distorção. O que se chama de “burocracia”, nesse contexto, não é o carimbo redundante ou a fila inútil no cartório. É o arcabouço legal que protege o meio ambiente e os direitos territoriais indígenas. É o direito à consulta prévia, livre e informada, assegurado aos povos indígenas pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário e que possui status supralegal em nosso ordenamento jurídico.
Tratar o licenciamento ambiental e o diálogo com as comunidades afetadas como “burocracia” é rebaixar a cidadania a um estorvo. É uma falácia que busca converter direitos em privilégios, e o devido processo legal em um obstáculo a ser removido pela vontade férrea do governador. E aqui, entramos em outra faceta fascinante e preocupante da nossa cultura política. Conforme exposto em clássicos da sociologia brasileira, como “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, também esteve presente no gesto do governador o nosso tradicional apelo ao personalismo.
A demanda não é por um debate técnico, por uma revisão de marcos legais no Congresso ou por uma mediação que componha os interesses em jogo. O apelo, ainda que implícito no evento de sexta, é direcionado à “sensibilidade” do presidente, ao líder, ao homem. É a reedição do velho tropo do monarca benevolente, que, com uma canetada, poderia suspender as regras do jogo em nome de um suposto bem maior, neste caso, o asfalto. É uma lógica que corrói as instituições, que despreza a impessoalidade da lei e que aposta na relação pessoal, no compadrio, como método de governança. Fia-se na exceção, não na regra.
Isso nos leva a questionar a própria noção de “progresso” que sustenta tal pleito. Uma estrada, por si só, não é sinônimo de desenvolvimento. Ela pode, de fato, facilitar o escoamento da produção do agronegócio, reduzir custos logísticos e, quem sabe, gerar lucros para um setor da economia. Mas a que preço? Qual o custo para a integridade do território das comunidades Xerente, para a preservação de sua cultura e de seu modo de vida? Qual o impacto na biodiversidade de uma região já tão pressionada pelo desmatamento? Desenvolvimento para quem? Progresso para quê?
O asfalto que ignora a floresta, seus povos e territórios não é estrada para o futuro; é um atalho para o conflito, para a degradação socioambiental e, em última instância, para prejuízos que a contabilidade simplista do frete não consegue calcular. Gera passivos ambientais, sociais e de reputação internacional que custarão muito mais caro às próximas gerações. Isso não é retórica ideológica. Há uma infinidade de exemplos históricos e contemporâneos que sustentam essa tese.
Esse episódio coloca o próprio presidente Lula numa encruzilhada pública e delicada. Seu governo, que se elegeu com a promessa de reconstruir as políticas socioambientais, demolidas pela gestão anterior, e de criar um inédito Ministério dos Povos Indígenas, é constantemente tensionado por aliados que representam o exato oposto dessa agenda. É o dilema de tentar equilibrar a Fiesp com a Amazônia, o agronegócio com a demarcação de terras, o desenvolvimentismo extrativista com a sustentabilidade. O silêncio ou a resposta de Lula a esse tipo de pressão é, sempre, uma notícia em si mesma, um termômetro das correlações de força dentro do poder. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, como diria nosso maior artista performático.
Seria o caso, talvez, de propor uma inversão completa da lógica. E se, em vez de enxergar as comunidades indígenas e os órgãos de proteção ambiental como um “entrave”, os víssemos como protagonistas do planejamento? A tal “burocracia” do licenciamento e da consulta prévia não é um obstáculo, mas um mecanismo de diálogo, uma ferramenta para a construção de soluções mais inteligentes e definitivas.
A ausência desse diálogo não acelera o progresso; ela apenas pavimenta, literalmente, o autoritarismo e o conflito. O verdadeiro desenvolvimento sustentável, aquele que não deixa um rastro de destruição social e ecológica, não se faz apesar das comunidades tradicionais, mas com elas.
Em vez de um apelo personalista para “quebrar a burocracia”, o que se esperaria de um estadista seria a defesa do fortalecimento de um protocolo claro de infraestrutura em territórios sensíveis. Um protocolo que, sob a regência dos Ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente, condicionasse a liberação de qualquer recurso federal não apenas ao licenciamento formal, mas à comprovação de que o projeto foi elaborado com as comunidades afetadas. Transformar a consulta, hoje vista por muitos como mera formalidade a ser cumprida, em uma etapa ativa, criativa e vinculante de planejamento e execução de políticas.
Isso seria, de fato, um avanço. Seria trocar a cultura do favor pela cultura do diálogo; o atalho autoritário pela construção paciente do consenso. Seria entender que a verdadeira obra de infraestrutura de que o Brasil precisa, antes de qualquer estrada, é a ponte sólida e bem fundamentada entre o desenvolvimento econômico e o respeito inegociável aos direitos indígenas e ao meio ambiente. O resto é apenas a repetição de um passado que insiste em permanecer.
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