Breque
O acidente de trânsito se tornou a semente de uma amizade eterna
Fosse combinado no relógio não seria tão exato.
Quando Bezerra da Silva canta o último verso, Renata desliga o Monza zero quilômetro e entra na padaria. O pão de queijo saído do forno e a baguete dourada roubam-lhe a pressa: qual vai levar? Ela matuta, ainda a cantar os versos do partideiro.
Então, a impaciência das buzinas e a angústia do segurança interrompem a contemplação. “De quem é o Monza?”
Renata, que ainda vai pegar as duas filhas gêmeas na pré-escola, abastecer o carro, tirar xerox de documentos, sacar dinheiro para pagar a diarista, reservar uma pousada em Ubatuba para o carnaval, comprar o jornal na banca e preparar o jantar, esqueceu de puxar o breque ao estacionar.
Pesado e solto, o carro desce a calçada. Não atropela ninguém, mas encontra um Chevette, semi-novo, que passa pela Vila Mariana. O acidente afunda a porta de um e arrebenta o pára-choque traseiro do outro.
Renata - a motorista distraída, ou atarefada - , corre em direção à rua. Está assustada e envergonhada. Aí, seus olhos encontram os de Paula.
Paula é a motorista do Chevette que levou a batida. Paula pede à Renata que se acalme, que ninguém se machucou. Elas trocam cartões. Renata, a motorista que causou o acidente, garante que o seguro dela vai pagar tudo e se desculpa novamente. Despedem-se com um aperto de mão. Paula acelera. A pequena multidão se dispersa.
Estamos em uma tarde quente de Fevereiro de 1995.
Renata conta ao marido. Com cara de marido, voz de marido e humor de marido, ele adverte, debochado: “Se todo mundo que tem a vida corrida não puxar o breque, não apagar o fogão, ou não fechar a janela, como é que fica? Tem certeza que quer continuar dirigindo?”
A boa notícia é que os carros estão tinindo outra vez. Paula e Renata conversam mais duas vezes por telefone. Surge a semente de uma amizade. Paula, casada e mãe de dois pré-adolescentes, propõe um almoço para que todos se conheçam. As crianças, de lá e de cá, acompanham. É a primeira e última vez que as famílias se reúnem.
Paula ajuda Renata com as gêmeas no banheiro e compartilha a melancolia: “Comigo é a mesma coisa, nunca tá bom.”
O verão do acidente, já virou primavera. Pela primeira vez, Paula conhece a casa de Renata, que agora é mãe solteira. O marido previsível, como era previsto, se mandou; costuma reclamar do valor da pensão na frente das filhas e não atende os telefonemas da ex-mulher.
Paula faz uma hora de massagem na amiga, que dorme nos primeiros dez minutos. Paula vai embora, dirige sob garoa e conclui com seus botões de madrepérola que o trânsito não é só uma fábrica de loucos, também pode ser campo fértil de sonhos e surpresas.
No aniversário de 15 anos do filho mais velho de Paula, que também se separou do marido, Renata vai de metrô, porque vendeu o carro para acertar as contas. Paula apresenta o primo de segundo grau, mineiro de Juiz de Fora. Bom de conversa, alto, bonitão e jovem.

Podia ser aquela a primeira noite de uma nova vida para a amiga. Podia, mas não foi. Não rolou.
Paula, cupido da amiga, insiste, prepara um segundo encontro e até empresta um vestido de decote profundo e sandálias altas. Apresenta Renata a um colega jornalista, um pouco mais velho. Agora, sim, dá certo. No mesmo ano nasce a primeira filha, chama-se Paula. Claro, o mesmo nome da madrinha.
Paula já é uma jovem avó de cabelos brancos e está na festa de quinze da afilhada, a Paulinha. É uma festa com música ao vivo. O samba cede lugar ao discurso. Paula ouve o compadre dizer que toda essa felicidade só foi possível por causa de uma pessoa.
Suspense! Os convidados se entreolham e ele completa: “É a Paula. Se não fosse ela...”
Ele pede que Paula diga algumas palavras. Os convidados gritam: “Discurso, discurso!!”
Paula amacia a garganta com um gole de Dry Martini e, como de costume, diz o necessário: “Gente, eu só testemunhei os acontecimentos. O responsável por tudo, o herói da história, foi o breque de mão.”
Gargalhadas, brindes e vivas ao breque. As Paulas se abraçam e o samba de Bezerra da Silva bota todo mundo de novo na pista.
Lá fora, alguém buzina.
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