Balengotengos: poemas de botija, de Gilson Soares Cordeiro
O livro de Cordeiro nos proporciona, sem sombra de dúvidas, uma das melhores poesias produzidas em língua portuguesa no ano de 2024
Uma breve caminhada pelas ruas das nossas cidades, e de repente lá está um velho par de tênis pendurado pelos cadarços na fiação. Aquilo é o mais próximo que uma criança de hoje pode chegar de um balengotengo. Houve um tempo, no entanto, em que as crianças brincavam na rua, corriam atrás de um pneu (muitas cresceram e passaram a orar para pneus), subiam e desciam de árvores e desbravavam as ruas no cockpit dos seus carrinhos de rolimã ou no comando de suas bicicletas velhas e acabadas, como aquela do personagem principal do conto “Coroinha”, de John Fante (1909 – 1983), em seu O vinho da juventude (1940).
Quando ainda não existiam os cercadinhos (alguns chamam de playground) nos condomínios, quando ainda nem existiam os condomínios, as crianças costumavam fazer seus próprios brinquedos. Entre tantos, o balengotengo era um dos mais comuns. Trata-se de um “brinquedo de criança feito com barbante e duas pedras, cada uma amarrada nas extremidades do barbante, usado para soltar pipas presas nas árvores, fios e outros lugares de difícil acesso”. E foi com o nome Balengotengo: poemas de botija, que o poeta Gilson Soares Cordeiro batizou seu mais recente livro, publicado no final de 2024, pela editora Sertão Cult. A palavra “botija”, que compõe o título refere-se a “potes ou caixas usadas para guardar dinheiro e objetos de valor, que geralmente eram enterradas em lugares secretos e revelados apenas a pessoas de confiança”. Na sua totalidade, o título do belíssimo livro de Cordeiro nos remete a um tempo que passou, mas que se mantém vivo nos escaninhos da memória do poeta, em suas botijas cravejadas de lembranças, como balengotengos sensoriais pendurados nas sinapses do tempo.
O livro de Gilson Soares Cordeiro é constituído de um prefácio escrito por Orlando Cantuário, mais cinco partes que dialogam entre si. A primeira parte é denominada de “Trapiche de estrelas” e contém 16 poemas. A segunda, “Gavetas de plumas, traz 56 poemas. A terceira, composta de 17 poemas chama-se “Eco e oco”. A quarta parte chama-se “Porno Gráficos” e é composta de 18 poemas. A última é denominada de “Axiomas de XXXX”, contando 4 poemas. Ao todo, a obra em questão é constituída de 111 poemas pequenos, mas imensos na significação poética que carregam, o que os aproximam, em forma e conteúdo, das poéticas de Paulo Leminski (1944 – 1989) e Orides Fontela (1940 – 1998), por exemplo.
Entre as inúmeras temáticas presentes em Balengotengos, tem-se a relação entre o ser humano e o mar, as memórias, os jogos propostos pelo poeta entre a língua e a literatura, o amor, o sexo, o social. Pelos versos do poeta, caminham personagens da literatura como Moreira Campos, Álvares de Azevedo, Leminski, Shakespeare, Mário Quintana; da filosofia, como Kierkegaard, e da mitologia, como Dédalo (que é mencionado 6 vezes) e Eros. De todos os poemas constituintes de Balengotengo é muito difícil apontar qual deles é o melhor, mas aposto naquele que diz: “Sobrevoando os muros de aço mais altos/minha alma enganchou em arame farpado/onde é que vou achar um balengotengo/a essa hora da madrugada?”. (poema “Balengotengo”, p.71), e ainda em “Sexo oral” (p. 173), cujo corpo inteiro do poema se resume à palavra “Wittgenstein”. Genial! O livro de Cordeiro nos proporciona, sem sombra de dúvidas, uma das melhores poesias produzidas em língua portuguesa no ano de 2024. Que o poeta universal do mar de Camocim não se demore a nos presentear com novos trabalhos de raríssima grandeza poética!
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