As mentiras que a guerra conta
O que une essas histórias é a permanência da mentira
A guerra entre Irã e Israel talvez tenha terminado (ao menos por enquanto). Mas como em tantas outras, o que se sabe ainda é incerto, e o que se diz, duvidoso. Toda guerra começa com uma história. E quase nunca com a verdade. Ao longo do último século, aprendemos a assistir aos conflitos como quem acompanha um filme com heróis, vilões e finais redentores. Mas há algo de profundamente encenado na forma como esses confrontos chegam às telas.
Desde a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos não atuam apenas nos campos de batalha; movem-se também nos bastidores das versões que legitimam a destruição. Essas versões raramente partem das vítimas. São escritas por quem vence, distribuídas por quem lucra, repetidas por quem teme. As guerras passam e novas surgem, mas as versões que as sustentam e as mentiras que as autorizam tendem a durar bem mais.
A invenção dos vencedores - A narrativa da liberdade como produto exportável ganhou forma logo depois da rendição alemã em 8 de maio de 1945. Falo daqui, da Alemanha onde vivo, e basta uma conversa casual para perceber que uma parcela significativa das pessoas repete a versão segundo a qual os Estados Unidos libertaram o país quase sozinhos. A propaganda do pós-guerra consolidou essa ideia com tanto sucesso que o esforço dos outros aliados, sobretudo o da União Soviética, que foi decisiva na vitória contra o nazismo, ao custo de mais de vinte milhões de vidas, quase desapareceu das conversas cotidianas.
A verdade é que os Estados Unidos só entraram na guerra depois de serem atacados em Pearl Harbor, em 1941. E não foi para salvar judeus ou combater o fascismo, mas para proteger seus próprios interesses no Pacífico. O Holocausto já acontecia, mas não foi razão suficiente para agir antes. Essa omissão moral foi eternizada sob a imagem de soldados heroicos, desembarcando na Normandia para salvar o mundo. O cinema cuidou do resto. A guerra, nesse caso, virou um espetáculo com direção norte-americana e edição (moral)seletiva. A mentira não esteve na derrota do nazismo, mas na forma como ela foi transformada em épico nacional.
No final do conflito, quando o Japão já dava sinais de rendição, os Estados Unidos lançaram duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. As cidades foram reduzidas a pó em poucos segundos, com dezenas de milhares de civis mortos instantaneamente. Até hoje, essa decisão é apresentada como um mal necessário. Como se dizimar duas cidades de uma nação já de joelhos fosse um gesto de bravura, e não de demonstração de poder. Talvez tenha sido ali, que se consolidou a ideia de que os fins (desde que contados pelos vencedores) justificam qualquer meio.
A reconstrução da Alemanha Ocidental, amparada pelo Plano Marshall entre 1948 e 1952, consolidou a imagem “terapêutica” da presença militar norte-americana. Nascia ali o modelo de narrativa que se repetiria ao longo do século: intervenções disfarçadas de ajuda, ocupações legitimadas como liberdade, reconstrução em troca de dependência econômica e subordinação. Ainda há outras verdades incômodas a serem ditas. Inclusive sobre o que se passou nos territórios ocupados pela União Soviética. Mas aí é uma história para depois, pois nenhuma guerra autoriza a idealização de heróis unilaterais.
Esse modelo se aprofundou durante a Guerra do Vietnã. Aprendemos, sobretudo pelos livros de história, e não tanto pelos grandes filmes, que os Estados Unidos perderam ali uma guerra que até hoje relutam em reconhecer como derrota. Mas essa derrota raramente é dita com todas as letras no imaginário audiovisual. Mesmo obras icônicas como Apocalypse Now (1979), que revelam o delírio e o horror da guerra, evitam encarar diretamente o fracasso militar como tal.
Já nos anos 1980, Hollywood ofereceu um antídoto simbólico: em Rambo II: A Missão (1985), um único ex-soldado norte-americano resgata prisioneiros e massacra, sozinho, legiões de vietnamitas. A tela oferecia a revanche que a História negara, convertendo fracasso em heroísmo plastificado. Três anos depois, em Rambo III (1988), o inimigo muda: agora é a União Soviética, no Afeganistão. Rambo passa a ajudar a resistência afegã. A mesma que, nos anos seguintes, daria origem ao Talibã. O herói é o mesmo, mas quem muda é o inimigo.
No mundo real, entre 1965 e 1975, a tecnologia militar dos EUA não conseguiu vencer um povo que lutava em túneis, aldeias e florestas. Quando a retirada final chegou em 1975, a narrativa oficial preferiu falar em trauma. O Vietnã virou erro estratégico, pesadelo psicológico, jamais derrota assumida. E o país que venceu a guerra foi quase apagado da memória pública. A mentira, nesse caso, não foi apenas o motivo da guerra; foi o disfarce para não encarar as consequências.
Nos anos 1990, com a Guerra Fria encerrada, Washington voltou-se para o Oriente Médio. A Guerra do Golfo começou em 2 de agosto de 1990, quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait. A coalizão liderada por George H. W. Bush lançou a Operação Escudo do Deserto em 7 de agosto de 1990 e, depois, a Operação Tempestade no Deserto em 17 de janeiro de 1991, encerrada em 28 de fevereiro de 1991.
Foi a primeira guerra transmitida quase em tempo real. A CNN exibiu bombardeios noturnos com gráficos luminosos; inaugurava-se a guerra-espetáculo. Sem as redes sociais, a imagem era controlada, unívoca, envolvente. O inimigo tinha nome e rosto: Saddam Hussein. A causa parecia nobre: libertar o Kuwait. Fora da tela, pouco se discutiu sobre petróleo, contratos de reconstrução e rearranjos de poder.
Do século XXI ao streaming da barbárie - Os atentados de 11 de setembro de 2001 abriram o novo século com outra narrativa grandiosa. Nunca vou esquecer que fui acordada para ver aquela “confusão” nos Estados Unidos. Osama bin Laden foi associado de imediato ao Afeganistão. Em 7 de outubro de 2001, os Estados Unidos deram início à Operação Liberdade Duradoura, nome oficial da invasão militar ao país sob o pretexto de combater o terrorismo. A escolha do nome (como em tantas outras campanhas), já trazia embutida uma justificativa moral. A ocupação durou até 30 de agosto de 2021. Quase vinte anos de presença militar e o resultado foi o retorno do Talibã ao poder.
Bin Laden, nesse intervalo, foi transformado em uma figura quase mítica: um estrategista inalcançável, escondido em cavernas de alta tecnologia, comandando redes invisíveis com inteligência militar de ponta. Essa imagem foi funcional e ajudou a manter viva a ideia de que a guerra era inevitável. Mas a verdade não foi tão cinematográfica. Quando finalmente foi localizado, em 2 de maio de 2011, estava no Paquistão (e não no Afeganistão) vivendo discretamente em uma casa comum, sem internet, cercado por mulheres e filhos, num bairro residencial de Abbottabad. A figura que os Estados Unidos perseguiram por uma década era menos poderosa do que útil. A guerra prometia democracia e no final deixou ruínas.
Anos depois, em 20 de março de 2003, George W. Bush e Tony Blair lançaram a invasão do Iraque, sob o nome de Operação Liberdade para o Iraque, alegando que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. Documentos foram forjados, imagens manipuladas, medo muito bem calibrado. Após a ocupação, relatórios internacionais confirmaram: nenhuma arma fora encontrada. Saddam, capturado em 13 de dezembro de 2003 perto de Tikrit, surgiu envelhecido, sujo, escondido num buraco. A figura do ditador implacável transformou-se num homem derrotado que jamais teve o arsenal anunciado.
A guerra não terminou aí. Começou outra fase: a reconstrução privatizada. Empresas como Halliburton, Bechtel e a então Blackwater receberam contratos bilionários (muitos sem licitação) e lucraram diante dos escombros que haviam ajudado a criar. A mentira justificou a guerra; a guerra justificou os lucros. O ciclo fechou-se, pronto para recomeçar.
Hoje, basta deslizar o dedo na tela para ver Gaza em chamas. A guerra deixou de ser apenas televisionada. Virou conteúdo de rede social: fragmentada, transmitida em tempo real, ajustada por algoritmos. Bombardeios se repetem diariamente, naturalizados como episódios de uma série sem fim. A dor converte-se em produto e, ao mesmo tempo, anestesia.
O que une todas essas histórias é a permanência da mentira. Sem ela, falta permissão moral para matar, invadir ou colonizar. Quando funciona, a guerra veste a fantasia de justiça e dever humanitário. Quando falha, ou quando é desmascarada, já é tarde. As bombas caíram, as vítimas (com muita sorte) foram enterradas e os responsáveis já começam escrever uma próxima versão. É aí que reside o maior risco da guerra contemporânea. Não basta acompanhar fatos; é preciso desconfiar das versões. A história mostra, de forma repetida, que a verdade é a primeira baixa de qualquer guerra. E que, muitas vezes, os mortos são enterrados junto com ela.
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