Apóstolos da mentira: quando a política trai a verdade
Vivemos uma era de crise da verdade. Em vez de serem líderes comprometidos com o bem comum, muitos políticos atuais se tornaram verdadeiros apóstolos da mentira
A carta dos 50%, enviada por Donald Trump com ataques insidiosos ao Brasil, acusando nosso país de ser “contra as eleições livres” e “os direitos fundamentais de liberdade de expressão dos americanos”, seria apenas risível e ridícula se não fosse tão eivada de mentiras óbvias e de falta de educação e compostura diplomática. Verdade que, em matéria de desatinos, nada mais vindo do atual presidente norte-americano chega a surpreender. O que surpreende e espanta, em vez disso, é que políticos brasileiros da atual oposição entrem no barco furado das vendetas e notícias falsas trumpianas e façam declarações explícitas de apoio a essa missiva que mais parece ter sido escrita por um transtornado psíquico. Tarcísio, governador de São Paulo, é um dos que se juntaram ao coro dos atuais aprendizes de ditador em curso e acusaram Lula de ser o responsável pela ira funesta do colega Trump. Caro Lula, a mentira faz escola. O Evangelho dos Apóstolos da Mentira tem muitos seguidores, no Brasil e no mundo.
Vivemos uma era de crise da verdade. Em vez de serem líderes comprometidos com o bem comum, muitos políticos atuais se tornaram verdadeiros apóstolos da mentira - não apenas mentirosos ocasionais, mas missionários da falsidade, que constroem sua influência com base na manipulação sistemática da realidade.
A metáfora é dura, mas precisa. Um apóstolo, no sentido original, é alguém que propaga uma doutrina com fervor e convicção. No caso desses políticos, a doutrina é a mentira. Não uma mentira qualquer, mas aquela que se transforma em ideologia, em instrumento de mobilização de massas e até em alicerce de governos inteiros.
A mentira como método - O fenômeno é global. Nos Estados Unidos, Donald Trump - que da mentira sistemática não se sabe se é apóstolo ou Papa - construiu um império político sobre a negação da realidade: das “fake news” à “grande mentira” sobre as eleições de 2020, sua estratégia foi sempre semear desconfiança e alimentar conspirações. Sua tática de base é a “Big Lie”, repetir a mentira até que pareça verdade.
No Brasil, Jair Bolsonaro zombou da ciência, disseminou desinformação sobre vacinas e inventou versões paralelas da história nacional, tudo com o objetivo de manter sua base em permanente estado de alerta e fidelidade. Sua tática principal é a desinformação via redes sociais e lives semanais com conteúdo manipulado.
O mesmo se vê na Rússia de Vladimir Putin, onde a falsificação do passado soviético e a distorção da realidade da guerra na Ucrânia sustentam uma política autoritária e belicista. A verdade, nesses regimes, é tratada como inimiga. Putin usa a mentira como arma de guerra. Tática principal: Criação de uma realidade paralela via controle da mídia estatal.
Na Turquia temos Recep Tayyip Erdogan, cujas mentiras mais marcantes são a negação de repressão a jornalistas e opositores, bem como a manipulação reiterada de dados econômicos e eleitorais. Os efeitos não poderiam ser outros: Fragilização da democracia turca, prisões políticas, censura. A tática principal de Erdogan: misturar até a exaustão nacionalismo, religião e censura, e criar ações para sustentar narrativas.
E não podemos deixar de lado, entre os principais apóstolos atuais da mentira (eles são muitos!), Benjamin Netanyahu (Israel). Suas mentiras mais marcantes: Minimiza ou nega a dimensão das violações de direitos humanos em Gaza; distorce fatos históricos e jurídicos sobre os palestinos. Efeitos: Escalada, até as raias do genocídio, do conflito com os palestinos; crescente isolamento diplomático. Tática principal: Uso de medo e nacionalismo para justificar ações militares controversas.
Esses líderes utilizam o que o pensador político Jason Stanley chamou de "propaganda autoritária": uma combinação de medo, ressentimento, distorção e culto à personalidade, que torna as pessoas não apenas desinformadas, mas incapazes de distinguir o verdadeiro do falso. Uma sociedade assim está à mercê de qualquer narrativa conveniente ao poder.
Uma mentira com seguidores – Mas estejamos atentos: Não é só o político que mente. É o sistema que absorve a mentira como parte de seu funcionamento. São redes sociais inundadas de fake news. É a mídia conivente ou intimidada. São instituições enfraquecidas pela constante erosão da confiança pública.
Mas talvez o aspecto mais inquietante seja a fidelização dos seguidores. Esses “apóstolos” da mentira conseguem o que muitos líderes sempre desejaram: uma base que não apenas os apoia, mas que acredita cegamente neles - mesmo quando a realidade os desmente. A mentira torna-se um dogma. Quem a contesta é tratado como inimigo, traidor ou “anti-Deus”.
Por que isso importa? - Porque quando a mentira se institucionaliza, a democracia adoece. O debate público se torna tóxico. A confiança entre cidadãos se dissolve. E o futuro passa a ser construído sobre areia movediça. A verdade não é apenas um valor moral - é uma condição para a convivência civilizada.
Haverá um caminho de volta? Sim, a resistência. Mas resistir a esse novo apostolado das trevas exige mais do que denunciar mentiras. É preciso reconstruir os fundamentos éticos do discurso político, defender a educação crítica, valorizar o jornalismo profissional e cultivar a humildade de mudar de opinião diante dos fatos. A verdade não é absoluta, mas a mentira deliberada é sempre um veneno.
Se há apóstolos da mentira, que surjam também os guardiões da lucidez - cidadãos, intelectuais, artistas, professores, jornalistas -capazes de defender o espaço público da palavra e da razão. Porque, no fim, a verdade pode ser silenciosa, mas não é frágil. Ela apenas precisa de quem a sustente, e ponha a boca no trombone.
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