A queda do IOF e o espectro do presidencialismo de coalizão
O modelo do presidencialismo de coalizão sobrevive no discurso, nos ritos, nos bastidores — mas sua eficácia se perdeu
O governo tentou aumentar o IOF. Foi atropelado. Não por erro técnico, nem por cálculo precipitado ou por ingenuidade. Foi atropelado porque o Congresso quis novamente marcar território — o território do orçamento, da chantagem, da campanha permanente. A cena revela mais do que uma derrota. Expõe um governo que age como se ainda houvesse pacto de coalizão, mas o que há, de fato, é outra coisa: um campo ocupado por interesses que não se submetem mais à mediação política clássica.
Ainda se fala em base de apoio, governabilidade, diálogo com o centro. Mas o presidencialismo de coalizão, aquele que sustentou governos desde a redemocratização, não opera mais como mecanismo real. O modelo sobrevive no discurso, nos ritos, nos bastidores — mas sua eficácia se perdeu. O que resta é um espectro. Sim, espectro é o termo exato: uma forma institucional esvaziada, encenada por inércia, mantida como fachada de normalidade enquanto as decisões se deslocam para outros polos de poder.
Esse modelo teve origem em um contexto específico. A Constituição de 1988 desenhou um presidencialismo forte, mas com um Legislativo fragmentado e um sistema partidário pulverizado. Para governar, os presidentes passaram a formar coalizões amplas, costurando maiorias com base em cargos e emendas. Em plena era FHC, o cientista político Sérgio Abranches chamou isso de presidencialismo de coalizão — uma solução informal para um problema estrutural: como produzir estabilidade sem coerência programática. Durante um tempo, funcionou. Mas à medida que os partidos perderam identidade e os interesses se autonomizaram, o que era mediação virou encenação. A coalizão deixou de sustentar projeto para apenas sustentar mandatos. A partir daí, virou espectro.
O espectro, aqui, não é metáfora vazia. É o que já não funciona, mas ainda estrutura o gesto. Presidentes seguem distribuindo ministérios, partidos seguem cobrando fatias do orçamento, mas o jogo já mudou. O que substitui o presidencialismo de coalizão não é um novo regime coeso, mas uma composição disforme: um amontoado de práticas autoritárias, fisiológicas e corporativas que, juntas, formam o que podemos chamar de compósito político.
Compósito porque não há centro, nem direção. Apenas partes que operam simultaneamente: um Congresso que legisla e executa, blocos de interesse que controlam territórios, orçamentos fragmentados, igrejas que funcionam como partidos, plataformas digitais que organizam o senso comum. É um regime que governa pela dispersão. Não é caos — é uma forma de dominação sem mediação pública, ajustada aos interesses das elites que já não precisam da política como linguagem comum.
O caminho até aqui tem marcos. O Brasil ensaiou formas distintas de presidencialismo: o dos coronéis na Primeira República, o centralismo de Vargas, o autoritarismo da ditadura, o modelo de coalizão da Nova República. Cada um lidou à sua maneira com o impasse histórico: como manter o poder concentrado em poucos, com aparência de participação de muitos. O presidencialismo de coalizão foi, por três décadas, o modo de sustentar esse equilíbrio tenso.
Esse equilíbrio ruiu em 2013, e a ruptura se acelerou em 2016. As manifestações de junho abriram rachaduras. O impeachment de Dilma formalizou a quebra. Desde então, o Congresso passou a operar como bloco autônomo. Partidos perderam densidade. Bancadas temáticas tomaram o lugar das articulações programáticas. E o Executivo, para continuar existindo, passou a ceder tudo: cargos, verbas, controle do planejamento. Um governo sob pressão constante, onde o mínimo custa caro.
Foi no governo Bolsonaro que esse processo se desenhou com nitidez. Ele começou rejeitando a lógica da coalizão, prometendo governar sem o Congresso e atacando o sistema partidário. Acabou capitulando ao centrão, entregando o orçamento e normalizando o loteamento direto de verbas via emendas de relator. Não havia mais mediação partidária nem projeto de governo — só um acordo bruto entre Executivo enfraquecido e Legislativo predador. A coalizão virou só repartição e o espectro se delineou.
Hoje, o presidente governa cercado. A base formal não garante maioria. O orçamento não está em suas mãos. O próprio conceito de governabilidade foi deformado: já não se trata de apoio para executar um projeto, mas de negociação permanente para não ser derrubado. A fidelidade parlamentar é orçamentária, não política. E o poder real circula por fora: nas bancadas do agro, nas corporações armadas, nas alianças com o sistema financeiro e nos acordos que não passam pela urna.
O caso do IOF escancara isso. O governo ensaiou um movimento dentro das regras do velho jogo. O Congresso respondeu dentro da lógica nova: cortando, retaliando, impondo sua vontade. A disputa não foi sobre imposto, foi sobre quem tem a chave do cofre e o comando do discurso público. E mais uma vez ficou claro que o Executivo opera sob o espectro de um modelo morto, enquanto quem governa de fato o faz por outras vias.
Esse arranjo não é transição para um novo regime democrático. Ele é funcional às elites que já não querem dividir poder, nem redistribuir nada. É um sistema que sustenta desigualdade e bloqueia conflito. As instituições seguem de pé, mas suas funções foram desviadas. O Judiciário atua como ator político direto. O Legislativo executa. O Executivo administra o impasse. E a democracia vira performance esvaziada, onde o povo vota, mas o poder já foi decidido antes.
A luta de classes não desapareceu — foi reorganizada. O capital financeiro, o agronegócio, setores do varejo e das igrejas ocupam posições estratégicas. São eles que definem o que pode e o que não pode. Do outro lado, as maiorias populares estão fora da equação. Desmobilizadas, invisibilizadas ou tratadas como problema de segurança pública. Só entram no debate quando é preciso justificar cortes ou endurecer a repressão. Fora isso, não contam.
Não há como reconstruir o antigo modelo. E o compósito já governa com força. Ou mudamos o rumo e fazemos outras escolhas — de projeto, de povo, de base social — ou o caminho continuará sendo o óbvio: mais concentração, mais chantagem, mais exclusão. Não se trata de esperar, mas de organizar. A história segue. E, como sempre, vai depender de quem está disposto a enfrentá-la em movimento.
Lula governa hoje entre o espectro e o compósito. Carrega, por experiência e por escolha, os gestos do presidencialismo de coalizão — mas se move dentro de um sistema que já foi capturado por outras lógicas. Negocia como se ainda houvesse pacto, mas entrega como quem sabe que está sob cerco. Pode ser a última tentativa de recompor, pelo alto, uma forma de governo baseada em mediação, política institucional e algum projeto nacional. Ou pode ser o último capítulo de uma era em que a política ainda buscava combinar governabilidade com representação. Se essa tentativa fracassar, o que virá depois talvez já não se preocupe nem com a aparência.
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