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Ivan Rios

Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia

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A pornochanchada e a hipocrisia moralista: da ditadura ao Bolsonarismo

Apesar da censura, a ditadura incentivou a pornochanchada. No bolsonarismo, o moralismo seletivo voltou como arma política e mecanismo de controle cultural

O golpe militar de 1964 instituiu uma ditadura de 21 anos (Foto: Arquivo Nacional )

Durante o período da Ditadura Militar (1964-1985), o Brasil viveu sob um regime que se apresentava como guardião da moralidade e dos valores tradicionais. O lema “Deus, Pátria e Família” orientava o discurso oficial, promovendo uma cultura conservadora que condenava qualquer manifestação considerada subversiva. A censura era rigorosa contra produções culturais que apresentassem críticas políticas ou sociais explícitas. No entanto, dentro dessa estrutura opressiva, havia um fenômeno paradoxalmente tolerado e incentivado: a pornochanchada.

O gênero cinematográfico, que misturava erotismo e comédia, dominou as bilheteiras entre os anos 1970 e 1980. Enquanto o regime perseguia intelectuais, artistas e cineastas do Cinema Novo, que denunciavam a violência estatal, permitia que as pornochanchadas prosperassem. Essas produções, vistas como “inofensivas”, serviam como distração para a população e desviavam o foco das tensões políticas.

A hipocrisia do governo se evidenciava na forma como lidava com essas obras. A moralidade pública era usada como justificativa para censurar discursos críticos, mas filmes recheados de erotismo e humor vulgar recebiam incentivos indiretos e isenções fiscais. Para os militares, o controle cultural não se baseava em preceitos morais genuínos, mas sim na conveniência política: enquanto algo servisse ao sistema, seria tolerado.

O falso moralismo e o bolsonarismo: continuidade e reconfiguração - Pulamos para os dias atuais e observamos um fenômeno semelhante no bolsonarismo. Assim como a ditadura, o governo Bolsonaro se apropriou do discurso moralista para mobilizar sua base conservadora. A retórica de “Deus, Pátria e Família” foi revivida como um símbolo da “defesa dos valores tradicionais” contra supostas ameaças progressistas. No entanto, esse moralismo não se traduziu em uma conduta ética coerente por parte do próprio governo e seus aliados.

Enquanto pregava o combate à corrupção e à degradação social, Bolsonaro e seus apoiadores frequentemente se envolviam em escândalos financeiros, nepotismo e discursos contraditórios. As acusações de rachadinhas, favorecimento de aliados e uso de máquinas públicas para benefício pessoal escancararam a seletividade moral do bolsonarismo. Como na época da pornochanchada, o moralismo era apenas uma máscara para garantir poder e controle.

Outro paralelo se dá na relação com a cultura e a censura. O governo Bolsonaro tentou sufocar produções culturais que criticavam sua gestão, cortando incentivos e atacando artistas opositores, enquanto fomentava conteúdos alinhados à sua narrativa, como filmes nacionalistas ou revisionistas sobre a ditadura militar, como as aberrações e bizarrices produzidas pela Brasil Paralelo. Há uma clara tentativa de moldar o imaginário popular conforme os interesses do poder, reproduzindo o mesmo modelo da ditadura, onde a censura não era um mecanismo de proteção moral, mas sim de controle ideológico.

Entre alienação e contestação - A pornochanchada foi simultaneamente um instrumento de alienação e uma plataforma de contestação disfarçada. No bolsonarismo, observamos um fenômeno similar: o governo alimentava uma cultura política simplificada, baseada em memes, fake news e discursos inflamados para mobilizar seu público, desviando a atenção de questões mais profundas. Entretanto, como na pornochanchada, artistas e intelectuais encontraram formas de driblar esse sistema e expor suas contradições, fazendo “o feitiço virar contra o próprio feiticeiro”, como no dito popular.Em ambos os períodos, a hipocrisia moralista serviu como ferramenta política. No passado, o regime militar sustentava um discurso de rígida moralidade enquanto permitia a exploração comercial do erotismo e da alienação cultural. Hoje, o bolsonarismo reveste sua imagem com valores conservadores enquanto age de maneira oportunista e contraditória, utilizando o moralismo como arma retórica para manipulação política.

Essa análise não busca igualar os contextos históricos, mas sim revelar como o uso estratégico da moralidade e da censura se repete ao longo do tempo. Assim como a pornochanchada expôs a hipocrisia do regime militar, a resistência cultural nos dias atuais continua a denunciar a falsa moralidade do bolsonarismo.

Esse ciclo de moralismo estratégico revela a fragilidade da retórica conservadora quando confrontada com suas próprias contradições. Um exemplo clássico e recente que ilustra essa dualidade é o tratamento do Carnaval e dos conteúdos religiosos no Brasil. Enquanto setores mais conservadores atacam festividades populares como o Carnaval, alegando degradação moral, esses mesmos grupos muitas vezes toleram ou até promovem a exploração comercial da fé e de eventos religiosos. Isso evidencia que o problema não é a imoralidade em si, mas quem a define e com que propósito.

Outro caso emblemático é a censura a livros didáticos e obras culturais nos últimos anos. O governo e grupos alinhados ao bolsonarismo tentaram impedir a circulação de conteúdos que tratam de diversidade, racismo e história crítica, alegando a defesa da "moral e bons costumes". No entanto, muitos desses mesmos setores apoiam produções midiáticas que reforçam estereótipos e promovem desinformação. O objetivo nunca foi proteger valores morais, mas sim impedir narrativas que desafiam a ideologia dominante.

A hipocrisia também se manifesta no campo econômico. Empresas que, em teoria, defendem valores conservadores muitas vezes patrocinam influenciadores que exploram conteúdos sensacionalistas e apelativos. Em contraste, movimentos sociais que criticam essas contradições são rapidamente rotulados como “ameaças à sociedade”. Assim, o moralismo torna-se uma ferramenta de manipulação para preservar interesses políticos e financeiros.

O fenômeno do falso moralismo é visível no mundo digital. Plataformas de redes sociais frequentemente aplicam punições severas a conteúdos progressistas sob alegação de violação de diretrizes, enquanto perfis que disseminam desinformação e discursos radicais seguem ativos sem grande interferência. Esse desequilíbrio não ocorre por acaso, mas é um reflexo da influência política exercida sobre os meios de comunicação.

Por fim, o ciclo se fecha quando observamos que, ao longo da história, essas contradições nunca resistem ao tempo. A pornochanchada e o Cinema Novo revelaram a hipocrisia da ditadura. Hoje, o crescimento de movimentos culturais e intelectuais críticos ao bolsonarismo segue o mesmo caminho. A resistência às narrativas falsas e ao moralismo seletivo persiste, provando que, no fim, os que detêm o poder não podem controlar completamente o pensamento e a arte.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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