Reynaldo José Aragon Gonçalves avatar

Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC) e do INCT em Disputas e Soberania Informacional.

57 artigos

HOME > blog

A guerra do legislativo contra o povo

'Uma aliança de bancadas e lobbies transforma o Legislativo em trincheira permanente contra o povo e ameaça sufocar qualquer futuro progressista no país'

Plenário da Câmara dos Deputados (Foto: Adriano Machado / Reuters)

Há um movimento silencioso e meticulosamente arquitetado que ameaça soterrar de vez qualquer possibilidade de projeto progressista no Brasil. Desde o início do terceiro mandato do presidente Lula, em janeiro de 2023, o Congresso Nacional vem operando, de forma reiterada e brutal, uma ofensiva que se assemelha a um parlamentarismo informal de guerra — um regime não escrito, sustentado por chantagens, bloqueios, sabotagens e negociações obscuras.

O Legislativo, controlado por blocos de interesses corporativos e oligárquicos, transformou-se num bunker de resistência contra qualquer agenda que aponte para a redistribuição de riquezas ou para a redução das desigualdades históricas do país. É um cerco articulado por bancadas transversais — ruralista, evangélica, da bala, do mercado financeiro e do rentismo — e apoiado por lobbies poderosíssimos que orbitam grandes conglomerados de mídia, do agronegócio, das empreiteiras e do sistema financeiro.

Em aliança, esses setores capturaram o Congresso para não apenas inviabilizar o governo eleito democraticamente, mas para, na prática, assumir as rédeas do poder político e econômico do país, independentemente da vontade popular. A meta não se restringe a constranger Lula: trata-se de sufocar qualquer possibilidade de reversão das reformas neoliberais, de consolidar privilégios de castas e corporações, de barrar políticas distributivas e de impedir que o Brasil volte a sonhar com um horizonte desenvolvimentista.

O resultado é um Legislativo que se tornou a trincheira de um golpe parlamentar permanente — aquele que não depende de soldados na rua, mas se constrói a partir de maiorias oportunistas, de acordos sujos e do controle absoluto do orçamento, impondo ao país um tipo de tutela disfarçada de democracia. É este processo, profundamente corrosivo, que ameaça não apenas a governabilidade, mas o futuro do Brasil.

Contexto histórico.

A crise institucional que se materializa hoje no Brasil não nasceu do nada. Ela tem raízes profundas, que remontam ao ciclo de golpes parlamentares, jurídicos e midiáticos iniciado ainda na década de 2010, quando o impeachment de 2016 abriu caminho para um Congresso cada vez mais empoderado, movido por interesses de grupos corporativos e pela sanha de capturar parcelas crescentes do orçamento público.

A eleição de 2022, ao devolver ao país um presidente legitimado pelo voto popular e identificado com pautas redistributivas, reacendeu temores nos setores que se beneficiaram desse arranjo oligárquico. Esses setores, aglutinados em bancadas transversais — ruralista, evangélica, armamentista e mercadista —, não tardaram a mobilizar sua força para impedir qualquer tentativa de reversão do modelo ultraliberal que havia se consolidado desde o golpe contra Dilma Rousseff.

Ao longo da campanha eleitoral de 2022, Lula enfrentou um ambiente envenenado por fake news, ameaças golpistas e uma estrutura parlamentar seduzida por emendas bilionárias, que passou a enxergar o Executivo como simples fonte de recursos e não como o centro legítimo da soberania popular. Mesmo eleito, Lula encontrou um Congresso moldado para sabotar: eleito sob o manto de “defesa da liberdade”, mas na prática comprometido com a blindagem de privilégios de classe, a manutenção de isenções tributárias para grandes fortunas, a entrega de recursos ao agronegócio e a desregulamentação ambiental e trabalhista.

Desde o primeiro dia do novo governo, instalou-se uma guerra de trincheiras dentro do Legislativo. Qualquer iniciativa progressista, ainda que moderada, passou a ser alvo de chantagens abertas, exigências orçamentárias desmedidas e ameaças de bloqueio. O governo foi obrigado a negociar cargos, ministérios e verbas como nunca se viu na história recente, sob pena de ter vetos derrubados, decretos anulados e projetos inviabilizados.

Esse cenário, que alguns tentam romantizar como “equilíbrio de poderes”, é, na verdade, a consolidação de um parlamentarismo de conveniência — um modelo não oficial, mas efetivo, no qual o Executivo se torna refém permanente de um Legislativo que atua como balcão de negócios. Assim se cristalizou a correlação de forças que, a partir de 2023, passou a impor ao governo uma submissão humilhante e a engessar qualquer perspectiva real de mudança.

A ofensiva do Legislativo.

Desde os primeiros meses de 2023, o Congresso brasileiro vem operando uma ofensiva sistemática contra qualquer possibilidade de governo progressista. Trata-se de um verdadeiro projeto de captura do poder político, articulado por bancadas poderosas — ruralista, evangélica, da bala, do mercado financeiro, do like, do agronegócio —, todas unidas por um denominador comum: impedir reformas que reduzam privilégios e avancem na democratização do país.

A primeira linha dessa ofensiva foi manter vivo, ainda que disfarçado, o orçamento secreto. Mesmo após o STF declarar sua inconstitucionalidade, o Congresso recriou as chamadas “emendas de comissão paralelas”, que, sob códigos RP‑2 e RP‑3, desviaram cerca de R$ 8,5 bilhões em 2025 sem qualquer transparência. Esses recursos, muitas vezes enviados a prefeituras sem critérios técnicos, abastecem a base eleitoral dos parlamentares e reforçam o poder de chantagem sobre o Executivo.

Outra frente central do ataque legislativo foram as sucessivas derrubadas de vetos presidenciais, que se tornaram rotina. Em 17 de junho de 2025, por exemplo, derrubaram 12 vetos de Lula, incluindo dispositivos que beneficiariam programas sociais, garantiriam maior controle de gastos públicos e protegeriam a arrecadação tributária. Com isso, mantiveram isenções fiscais para fundos milionários de investimento, favoreceram agroquímicos sem registro e aliviaram a fiscalização de recursos partidários — tudo isso sob intensa pressão dos lobbies ruralista e financeiro.

O Legislativo também protagonizou, entre 25 e 26 de junho de 2025, a histórica anulação do decreto que reajustava o IOF e a CPMF, impostos que garantiriam até R$ 10 bilhões em recursos para saúde e educação. Foi a primeira vez, desde 1992, que um decreto presidencial foi derrubado dessa forma, evidenciando a disposição do parlamento em sufocar qualquer mecanismo de redistribuição de renda e arrecadação justa.

Não bastasse, as chantagens vieram à tona em forma de “orçamento agiotado”: aprovações e liberação de emendas condicionadas a cargos, favores e ministérios, transformando a relação institucional entre Executivo e Legislativo em um jogo permanente de ameaças. Assim, programas como o Minha Casa Minha Vida, o Auxílio Gás, e até a recomposição do piso da educação ficaram reféns de barganhas parlamentares, alimentadas por grupos que atuam em bloco para manter a miséria como instrumento de controle eleitoral.

Por trás dessa engrenagem estão personagens conhecidos. Davi Alcolumbre, Hugo Motta, Ângelo Coronel e outras lideranças do Centrão coordenaram a engenharia que blindou privilégios do agronegócio, dos fundos de investimento, do mercado imobiliário e de outras elites acostumadas a capturar fatias generosas do orçamento público. Ao seu redor orbitam bancadas temáticas profundamente reacionárias, como a da bala, da fé e da boiada — todas unidas contra qualquer mudança que questione seus privilégios.

Essa ofensiva legislativa não é episódica, mas estrutural: organizada para inviabilizar políticas públicas de médio e longo prazo, sufocar a capacidade de gestão do governo federal e construir, na prática, um modelo de parlamentarismo informal onde presidentes eleitos passam a ser meros reféns do balcão de negócios do Congresso.

A estratégia de inviabilização do Executivo.

A conduta do Legislativo brasileiro desde janeiro de 2023 não se resume a divergências pontuais de projeto ou a tensões típicas de uma democracia. O que se desenha é uma estratégia coordenada de esvaziamento deliberado do Executivo, para reduzir o poder de decisão do governo e garantir que nenhuma agenda minimamente popular ou redistributiva avance.

O cerne dessa estratégia está na apropriação do orçamento público. A engenharia de emendas de relator, as emendas paralelas travestidas de RP‑2 e RP‑3, e as transferências chamadas de “Pix orçamentário” colocaram congressistas no centro da gestão de bilhões de reais, esvaziando a capacidade do governo federal de planejar políticas públicas. Na prática, a Presidência foi obrigada a mendigar liberação de recursos para garantir programas estruturantes, submetendo-se à vontade de parlamentares muitas vezes alheios ao interesse público.

A tática legislativa é dupla: de um lado, sufoca as fontes de arrecadação do Executivo, ao derrubar decretos e vetos que poderiam reforçar a capacidade fiscal do Estado — como a CPMF e o IOF, estimados em mais de R$ 10 bilhões. De outro, amplia a própria autonomia financeira de deputados e senadores por meio de verbas negociadas sem transparência, reforçando a dependência do governo dessas mesmas lideranças.

Esse modelo se cristalizou ao longo do tempo: a cada iniciativa do Planalto para retomar instrumentos de política social — como o fortalecimento do Bolsa Família, a recuperação da política habitacional ou a recomposição do salário mínimo — surgem novas ameaças parlamentares, geralmente articuladas pelas bancadas do like, ruralista, evangélica e da bala, em parceria com grupos que representam interesses do capital financeiro. O objetivo não é apenas derrotar políticas pontuais, mas desmontar a governabilidade presidencial e reduzir Lula e qualquer governante futuro a um administrador de folhas de pagamento do Centrão.

A estratégia de inviabilização vai além de medidas pontuais. Ela se alimenta de instabilidade programada: ao impor derrotas sistemáticas ao Executivo, retira-se previsibilidade do governo, prolonga-se o desgaste e se mina qualquer perspectiva de reconstrução de políticas públicas que gerem prosperidade. Dessa forma, o Congresso pavimenta o caminho para 2026, esperando que a incapacidade de Lula de entregar resultados sociais concretos produza descrédito popular, favorecendo a reeleição de um parlamento ainda mais conservador e disposto a consolidar de vez um parlamentarismo de fato.

Neste sentido, a destruição orquestrada da governabilidade progressista não serve apenas ao presente — serve, sobretudo, a garantir um futuro em que a soberania popular seja meramente decorativa, e o Brasil siga prisioneiro de castas parlamentares que se sentem donas do país.

As consequências sociais e econômicas.

O bloqueio sistemático imposto pelo Congresso ao governo Lula não é apenas uma disputa de poder abstrata: tem consequências concretas e dramáticas para o povo brasileiro. Ao inviabilizar a arrecadação de impostos progressivos, ao proteger privilégios do rentismo e ao sabotar políticas sociais, o Legislativo está, na prática, reforçando desigualdades históricas e jogando milhões de brasileiros à beira da desesperança.

O estrangulamento das receitas públicas, especialmente com a derrubada da CPMF e do aumento do IOF, comprometeu recursos vitais para saúde, educação e programas sociais. O Auxílio Gás, o Minha Casa Minha Vida, a recomposição do piso da educação e a expansão de políticas habitacionais sofreram impactos diretos. Os vetos derrubados — como aqueles que preservariam maior controle sobre fundos de investimento e benefícios para grandes fortunas — mantiveram intactos os privilégios de quem sempre acumulou riqueza às custas do trabalho da maioria.

A manutenção de orçamentos paralelos, via emendas de comissão e transferências “Pix”, não apenas alimentou a corrupção estrutural, mas também estimulou o clientelismo mais predatório, onde prefeitos e lideranças locais passam a depender de acordos políticos espúrios para garantir obras básicas e ações de infraestrutura. Isso gera distorções profundas no planejamento público e no uso racional dos recursos do Estado, transformando políticas públicas em moeda de troca.

O impacto social vai além do presente. Ao sufocar qualquer tentativa de reconstruir programas de inclusão social e de distribuição de renda, o Legislativo planta um terreno fértil para o aumento da violência, da fome, do desalento e do desemprego. Um país sem recursos para proteger a sua população torna-se refém do assistencialismo pontual, manipulável e insuficiente, mantendo a miséria como ferramenta de dominação política.

Do ponto de vista econômico, a paralisia legislativa impede investimentos estruturantes, compromete a previsibilidade para empresários comprometidos com a produção e empurra o Brasil para um ciclo de crescimento anêmico, baseado na exploração primária de commodities e na extração predatória de riquezas naturais. Assim, o país se afasta de qualquer projeto soberano de desenvolvimento nacional, perdendo competitividade, tecnologia e capacidade de gerar empregos qualificados.

As consequências, portanto, não recaem apenas sobre o governo, mas sobre o conjunto da sociedade. O Legislativo, transformado num condomínio de interesses privados, impõe ao Brasil uma lógica de retrocesso e estagnação, barrando qualquer chance real de superar o subdesenvolvimento histórico que marca nossa trajetória.

Projeções para o futuro.

Se o padrão atual de dominação legislativa persistir, o Brasil caminhará rapidamente para a consolidação de um parlamentarismo de fato, onde presidentes eleitos terão cada vez menos margem de manobra para cumprir qualquer projeto de transformação social. Esse parlamentarismo informal, sustentado por lobbies e bancadas corporativas, ameaça se cristalizar como um regime permanente de chantagem, anulando a soberania popular expressa nas urnas.

O que se observa é a formação de uma engenharia política de longo prazo. Ao manter a fragmentação partidária, ao sustentar bancadas fisiológicas poderosíssimas e ao dominar a gestão orçamentária via emendas secretas e paralelas, os grupos conservadores do Congresso estão pavimentando uma rota para eternizar seu poder, tornando qualquer governo progressista refém de negociações humilhantes e de vetos casuísticos.

O resultado provável, caso não haja reação, é a instalação de um modelo no qual o Executivo se torna apenas um administrador protocolar do país, incapaz de liderar projetos nacionais de desenvolvimento. Esse esvaziamento do poder presidencial abre caminho para o reforço de uma lógica colonial interna: Estados, municípios e territórios submetidos a verbas controladas por caciques políticos, que atuam como intermediários entre o povo e as políticas públicas, num clientelismo sem fim.

Em 2026, esse projeto encontrará sua prova de fogo. Ao inviabilizar Lula nos próximos dois anos, o Legislativo aposta em eleger uma configuração ainda mais submissa aos interesses corporativos, criando um cinturão de contenção capaz de anular qualquer veleidade redistributiva. O plano, na essência, não é apenas derrotar Lula: é desmoralizar a ideia de que governos populares possam dar certo, para perpetuar a narrativa de que a única saída é a tutela dos grandes grupos econômicos e da elite parlamentar.

Caso a sociedade não consiga construir mecanismos de resistência e reorganização, o que se vislumbra é um país refém da paralisia institucional, sem horizonte de crescimento sustentável, vulnerável a novas ondas de autoritarismo e distante de qualquer projeto de soberania popular real. É a repetição da tragédia latino-americana: a democracia capturada, a política sequestrada e o povo relegado ao papel de espectador de sua própria miséria.

Conclusão.

O que se desenha no Brasil desde janeiro de 2023 não é apenas uma disputa de governo, mas uma batalha sobre quem deve exercer, de fato, a soberania popular. O Legislativo, capturado por interesses corporativos e bancadas reacionárias, transformou-se em instrumento de bloqueio sistemático de qualquer projeto que aponte para a redução das desigualdades, a soberania nacional e o desenvolvimento social.

Esse movimento, profundamente articulado, constrói as bases de um parlamentarismo disfarçado, no qual deputados e senadores, aliados a lobbies econômicos, sequestram a política pública e impõem ao Executivo a condição de refém. É uma engenharia sofisticada de poder, que combina chantagem, distribuição de recursos opaca e o domínio de cargos e verbas, sempre a serviço de privilegiar castas e corporações.

Ao desestabilizar o governo, ao sabotar a arrecadação, ao desmontar políticas sociais e ao sufocar iniciativas populares, essa aliança parlamentarista reacionária pretende muito mais do que derrotar Lula: pretende enterrar definitivamente qualquer possibilidade de futuro progressista no Brasil. Seu objetivo maior é impedir que a sociedade reconquiste instrumentos de transformação, perpetuando o país em uma dependência estrutural, submisso a elites predatórias e sem projeto de nação.

Por isso, compreender e denunciar esse processo é uma tarefa urgente. É preciso fazer a sociedade enxergar que o inimigo da democracia não se veste apenas de farda ou de toga, mas também se camufla sob o verniz do “parlamento soberano”, manipulando regras e recursos para se tornar uma muralha intransponível ao voto popular.

Somente a mobilização crítica, a vigilância cidadã e a recusa ao conformismo podem abrir caminho para reverter esse quadro. Caso contrário, o Brasil corre o risco de consolidar, nos próximos anos, um parlamentarismo autoritário, disfarçado de democracia, que neutralizará qualquer tentativa de mudança real — e manterá o povo eternamente do lado de fora do poder que deveria ser seu.

 

 

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Rumo ao tri: Brasil 247 concorre ao Prêmio iBest 2025 e jornalistas da equipe também disputam categorias

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Cortes 247

Relacionados

Carregando anúncios...
Carregando anúncios...